A culpa é do dedo que aciona o gatilho ou da bala? Por Assuero Stevenson
"Alerto aqui que minha opinião está vinculada ao estado positivado, ou seja, às leis e sua interpretação, deixando de fora o 'deveria ser assim', 'melhor assim' e, dessa forma, seria mais eficiente"No Brasil dos últimos meses, em que a pandemia abalou as estruturas familiares e econômicas, fez surgir brasileiros agora de opiniões não só quanto ao futebol, saúde e, sobretudo, quanto às questões jurídicas, talvez fruto da imposição da vida não mais cheias de opções, prevaleceu a forma nervosa do lockdown.
Alerto aqui que minha opinião está vinculada ao estado positivado, ou seja, às leis e sua interpretação, deixando de fora o "deveria ser assim", "melhor assim" e, dessa forma, seria mais eficiente.
Vamos aonde quero chegar. Falo aqui sobre as ações policias em que surgem as vítimas não desejadas e óbitos marcantes nas colunas dos periódicos sociais. Exemplo clássico e que, infelizmente, ocorre quando, em ações, alguns policiais, ao perseguirem bandidos, suspeitos, resolvem, em uma fuga, atirar em via pública.
Quando o alvo é atingido, desculpas, álibis, surgem. E na hipótese de um cidadão, uma criança, uma mulher, que nada tem com o fato policial vêm a ser atingidos? Então, o agente que disparou deve ser punido de forma dolosa ou culposa?
Distante e bem distante do que determina o código, a leitura, poderiam os "novos juristas" responderem que a intenção não foi atingir terceira pessoa e, assim, surgir o crime por culpa em estrito senso. Informo, de já, não pensem assim! Dessa forma, vocês não passam nem no portal do cemitério, imagine em concurso.
A questão é de simples compreensão. O art. 73 do Código Penal esclarece o ponto negro que serve de égide aos ignorantes "quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa adversa, responde como se tivesse praticado contra aquela (...)". Sob a ótica doutrinária, ocorreu o erro na execução (ou aberratio ictus), que é uma espécie de erro do tipo acidental em que o legislador adotou a teoria da ficção. Hipoteticamente, consideram-se as qualidades da pessoa que o sujeito pretendia atingir (vítima virtual) e não as qualidades da que, efetivamente, atingiu (vítima real).
Assim, se o policial pretendia atingir o bandido e acerta terceira pessoa, considera-se como força motriz de sua ação, a origem. Ou seja, ao efetuar o disparo em fuga contra as costas de um bandido e atingir uma terceira pessoa, a ação de acionar o gatilho de forma livre e consciente constitui em dolo, ocorrendo, assim, execução imperfeita, respondendo pelo crime, considerando-se as qualidades da vítima visada.
Outrossim, ao policial, cumpre observar as regras postas em todo o ordenamento. A Lei nº 13.060/2014, estabelece em seu art. 2º, parágrafo único, inciso I, o seguinte "não é legítimo o uso de arma de fogo contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança ou a terceiros".
Referida Lei é posta para a segurança dos cidadãos e não dos bandidos, uma vez que, quando em fuga, um projétil poderá ceifar vidas inocentes. Além do que, eliminar um marginal pelas costas é, no mínimo, covardia. No Brasil não existe pena de morte, ressalvada a legítima defesa.
Nesse sentido – e não poderia ser diferente –, o Superior Tribunal de Justiça decidiu recentemente:
RECURSO ESPECIAL. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA. HOMICÍDIO DOLOSO. ERRO NA EXECUÇÃO. ABERRATIO ICTUS COM DUPLICIDADE DE RESULTADO. DOLO. EXTENSÃO À CONDUTA NÃO INTENCIONAL. INCIDÊNCIA DO ART. 73, ÚLTIMA PARTE, DO CP. APLICAÇÃO DO CONCURSO FORMAL. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Ocorre aberratio ictus com resultado duplo, ou unidade complexa, de que dispõe o art. 73, segunda parte, do CP, quando, na execução do crime de homicídio doloso, além do resultado intencional, sobrevém outro não pretendido, decorrente de erro de pontaria, em que, além da vítima originalmente visada, outra é atingida por erro na execução. (...)
3. Alvejada, além da pessoa que se visava atingir, vítima diversa, por imprecisão dos atos executórios, deve ser a ela estendido o elemento subjetivo (dolo), aplicando-se a regra do concurso formal. 4. "A norma prevista no art. 73 do Código Penal afasta a possibilidade de se reconhecer a ocorrência de crime culposo quando decorrente de erro na execução na prática de crime doloso" (HC 210.696/MS, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 19/09/2017, DJe 27/09/2017). 5. "Por se tratar de hipótese de aberratio ictus com duplicidade de resultado, e não tendo a defesa momento algum buscando desvincular os resultados do erro na execução, a tese de desclassificação do delito para a forma culposa em relação somente ao resultado não pretendido, só teria sentido se proposta também para o resultado pretendido" (HC 105.305/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 27/11/2008, DJe 09/02/2009). 6. Recurso especial provido para restabelecer a sentença de pronúncia. (REsp 1853219/RS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 02/06/2020, DJe 08/06/2020)
Em resumo, caros amigos, a legislação estabelece que o crime doloso quando, de forma livre e consciente, se pratica uma ação. De forma diversa, seria atribuir ao projétil ânimo subjetivo e estaríamos, assim, em um estado teratológico.
A mão que toca o violão, age com doçura. Se for preciso faz a guerra, mata o mundo, fere a terra. Assim, a ação é dolosa.
Entederam? Mora na filosofia.
Assuero Stevenson Pereira Oliveira é promotor de Justiça Militar no Estado do Piauí.
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