Tudo o que está sob o sol e sob a lua é simplesmente confusão e corrupção¹, pregava Limosus Negro, o cátaro puro, no século XII, no sul da França. Sua alma assentava-se no princípio da dualidade que a tudo se impunha, o perfeito versus o imperfeito, o eterno versus o temporal, o bem versus o mal…
A maior desventura de sua alma era a dualidade entre mundo material e espiritual. A existência de matéria era tormento sem fim. Angustiava-lhe, profundamente a ciência de que os corpos humanos, a matéria, era um terrível cárcere criado por Lucibel, Satanás, para aprisionar fagulhas da divindade, primeira, essencialmente boa porque inteiramente espiritual.
A felicidade só existia no espírito, era inatingível aos seres humanos porque somente seria possível depois da destruição da matéria. A morte libertaria a centelha divina agrilhoada ao corpo pelo anjo maligno caído da harmonia celeste.
Sua crença partia da doutrina gnóstica para a qual, no princípio existiu uma divindade perfeita que continha tudo em si mesma. De um instante para o outro, este todo deu início a um processo constante de partição em pedaços iguais.
Ademais, também de um instante para outro, a partição produziu uma partícula diferente, o Demiurgo. Os demais pedaços da divindade primeira, que antes se julgavam iguais e portanto perfeitos, ao verem a partícula diferente, perceberam que não eram completos: faltava-lhes algo que estava presente naquela.
Isto desintegrou a divindade, suas partículas se dispersaram e prosseguiram o processo de partição interminável.
Para o valdismo, seita semelhante ao catarismo, a partícula da divindade inicial era uma centelha do Espírito Santo, pregava que cada fiel é depositário do Espírito Santo. (2).
Para conter a desintegração da divindade, surgiu o Demiurgo, o maligno, que criou a matéria, o Universo, e dentro dela aprisionou as partículas divinas. Foi também o Demiurgo o criador da moral e da inteligência humana. A matéria impõe, às partículas, um indizível sofrimento, pois tudo o que anseiam é a volta à unidade inicial.
O catarismo era seita gnóstica e esta cosmovisão se opõe essencialmente ao catolicismo.
A crença cátara tem fundamento pagão e segue a mesma orientação de dualidade divina. Adota como ponto de partida a existência de um deus bom, o criador dos espíritos perfeitos, e outro deus mau, o criador do Universo.
Platão já expunha seita semelhante no Fedon. Afirmou, categoricamente, estar seguro do avanço que lhe traria sua transferência para junto dos deuses que são excelentes amos, por isso não se revolta com a ideia de morte, pelo contrário, tem esperança nela.(3).
Para Platão, as crianças deveriam ser educadas para temer a morte o menos possível e tornarem-se adultos corajosos para lutar pela liberdade mais do que pela própria vida.(4)
Os cátaros, nesta mesma senda, sonhavam com um mundo espiritual submetido ao deus bom, o criador dos espíritos perfeitos. Para concretizar este sonho, precisavam destruir o mundo material, extinguir tudo o que favorece a vida sob o sol e sob a lua.
Esta linha de espiritualização exige bárbara violência contra a vida. É contrária à humanidade porque, a serviço do “deus bom”, os cátaros pregavam a mortificação do corpo, a autoflagelação, ademais, eram contra o casamento pois produzia mais matéria: os filhos5. Se casados, deveriam desprezar suas esposas, para não produzirem novos cárceres da alma.
Aos puros, perfeitos como Limosus Negro, as relações sexuais eram proibidas, mas os cátaros tinham outro nível de membros da seita: os crentes. A estes era tolerada a sexualidade mas, preferencialmente, o concubinato e o homossexualismo, nunca o casamento. Eram considerados males menores, por isso era preferível o amor livre.
O suicídio era muito apreciado por eles sob a forma de envenenamento, jejum absoluto até causação da morte e pela exposição voluntária ao frio intenso seguido de banho muito quente para provocar pneumonia.
Como o ideal era favorecer o desprendimento da fagulha divina aprisionada no corpo, chegavam ao extremo de matar mulheres, sobretudo as grávidas (6).
Em face destas barbaridades contra a matéria, há quem defenda que, se a crença se tornasse universal, fatalmente levaria à extinção da espécie humana.(7)
A violência perpetrada pelos cátaros em cumprimento os pressupostos da seita, ostenta tal selvageria que remete à barbárie primitiva. Entretanto, o comportamento dos perfeitos atraía adeptos. Ocorre que estes puros se impunham uma vida austera e pobre enquanto o clero vivia a ostentação e escandalos.
Outro elemento que favoreceu o avanço do catarismo foi a aliança com barões e altos senhores feudais. Para estes, a adesão ao catarismo lhes justificava saquear os conventos, incendiar as igrejas, inclusive com fiéis dentro, e quiçá até desapropriar os bens da igreja.(8)
Era, em tudo, contrária ao catolicismo, que reconhece a existência de um único Deus, eterno e transcendente, cuja bondade fez criar a matéria e todas as belezas do universo.
No catolicismo a matéria é essencialmente boa, provém do Sumo Bem e ao bem se destina. A vida humana é matéria, alma e espírito, unidade com três faces. Por isso, aviltar a matéria é aviltar a vida, dom, dádiva e expressão da bondade de Deus.
A reprodução e a defesa da vida são a missão primeira do ser humano, como gratidão ao Deus único. A crucificação de Cristo evidenciou a vileza dos maus tratos impostos à carne, que causam sofrimentos inimagináveis ao espírito, sobretudo porque finda por destruir a vida humana, a depender de sua intensidade.
Se Deus é uno, não comporta divisão em fagulhas nem dualismos.
O homem, feito à imagem do Criador, é unidade ontológica de espírito, corpo e alma para florescimento de todas as suas potencialidades. Sua essência tem o mesmo destino das plantas: florir e frutificar. É dever do cristão crescer em virtude para garantir este florescimento.
A cristianização foi lentamente modificando os costumes, pois o gnosticismo pagão permaneceu na alma de muitos recém-convertidos como um padrão de comportamento ancestral.
A força da crença antiga não lhes permitiu compreender e seguir perfeitamente a mensagem de Cristo, no instante da conversão. Muitos seguiram com uma imagem ancestral de que a matéria é expressão do mal.
Os cátaros tinham referências em Cristo mas não o reconheciam como Deus. O consideravam um anjo, mensageiro de Deus, com natureza puramente espiritual. Nunca esteve encarnado, sua passagem na terra foi miragem, aparência pois, sendo puro espírito, não poderia ter qualquer contato com a matéria, essencialmente má.
Os Cátaros se opunham visceralmente às manifestações de culto católico especialmente à Cruz Sagrada, às imagens ou às relíquias. Eram matéria, aos seus olhos, expressão do mundo satânico, por isso profanavam os templos e cultos católicos. Aviltavam ferozmente a eucaristia, não aceitavam que é o corpo de Deus vivo e, tanto quanto os objetos de culto era matéria, lhes causava horror e deveria ser destruída.
A vida humana, que somente existe no corpo, era para eles a expressão do mal. Nesse contexto, o suicídio era o ponto alto dos ensinamentos cátaros, muitos o perpetravam para apressar a libertação da partícula divina presa na carne.
No catarismo, a malignidade da realidade material do homem era insuperavelmente maior na mulher em face de sua natural fecundidade, capacidade de reprodução.
Conheciam a Cristo mas adotavam uma doutrina oposta à sua orientação e ao seu exemplo de vida na terra. Em Piacenza chegaram a expulsar o clero católico.
Queriam extinguir a humanidade o que contraria inafastavelmente a estrutura ontológica do corpo humano e do mundo material que, em tudo, são propensos e complementares à preservação e reprodução da vida.
Evidentemente o catarismo viola a primeira lei natural, a ordem que dirige a humanidade à frutificação, ao florescimento da vida.
As ideias modernas de amor livre, complacência com a infidelidade conjugal, promoção à legalização do aborto e da eutanásia, controle de natalidade, profanação dos Sacrários e as ideias que afrontam a perenidade e reprodução da vida, trazem resquícios gnósticos, acentuadamente cátaros.
Parece que a pregação de Limosus Negro ainda reverbera nos dias de hoje, sopra espessas nuvens sobre a revelação de Jesus Cristo, e a tormenta de suas ideias ainda desfolha e despetala o florescimento da vida.
Deus nos ajude!
María Cecília Pontes Carnaúba - é promotora de Justiça do Estado de Alagoas, mestra em Direito (UFPE), doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (PT); autora do livro Provas Ilícitas (Editora Saraiva), além de diversos artigos jurídico-científicos.
REFERÊNCIAS
1 - ROPS, Daniel, A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, São Paulo, Quadrante, 2011, p. 592.
2 - Idem, Ibidem, p. 583
3- PLATÃO, A Teoria das Ideias, trad. Adalberto Roseira, São Pulo, Hunter Books, 2013, p.121.
4 - PLATÃO, A República, trad. Ed. Martin Claret, São Paulo, Martin Claret, 2004, p. 74.
5 - PERNOUD, Régine, O Mito da Idade Média, 101, ed. Portugal: Europa-América, 1977, p.110.
6 - PALMA, Laura, Inquisição, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=j7f3hX7-8Vg
7 - BERNARD, José, A Inquisição, História de uma Instituição Controvertida, 1ª ed. Petrópolis: Santa Cruz, 2016, p110.
8 - ROPS, Daniel, A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, São Paulo, Quadrante, 2011, p. 595.
Fonte: JTNEWS