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Cátaros, Políticas sociais, Preconceitos e Constituição; por Maria Cecília Carnaúba

"O Estado brasileiro registra, na Constituição, a herança ancestral ocidental que se estruturou através da transposição do paganismo grego para o cristianismo"

Foto: Arquivo Pessoal cedido ao JTNEWS
Maria Cecília Carnaúba

Há muito tempo surgiu a doutrina gnóstica, ensinava que no princípio dos tempos existiu uma divindade perfeita, continha em si tudo o que existe. De um instante para outro, este todo deu início a um processo constante de partição em pedaços iguais, em essência, e opostos em acidentes. Deste processo surgiram masculino/feminino, claro/escuro, o alto e baixo etc.

Foto: Arquivo Pessoal cedido ao JTNEWS
Maria Cecília Carnaúba

Segundo estes teóricos, também de um instante para outro, a partição produziu uma partícula diferente, os demais pedaços da divindade primeira, que antes se julgavam iguais, ao ver a partícula diferente perceberam que não eram completos, faltava-lhes algo que estava presente na partícula diferente.

Isto desintegrou a divindade, suas partículas se dispersaram e prosseguiram o processo de partição interminável. Para conter a desintegração da divindade, surgiu um ente, o Demiurgo, que criou a matéria e dentro dela aprisionou as partículas divinas. Interrompeu o processo de desintegração através do aprisionamento das partes do divino.

Neste processo há uma divindade boa, o todo inicial, e um Deus mau, o criador da matéria. O paganismo fundava-se nesta doutrina, a matéria era má porque aprisionava do divino que precisava, a qualquer custo, libertar-se para tentar trilhar um caminho de retorno à unidade original, à plenitude. O platonismo é mostra clara desta cosmovisão.

Platão, em Fedon, afirmou categoricamente estar seguro do avanço que lhe traria sua transferência para junto dos deuses que são excelentes amos, por isso não se revolta com a ideia de morte, pelo contrário, tem esperança nela.1 Por isto, as crianças deveriam ser educadas para temer a morte o menos possível e tornarem-se adultos corajosos para lutar pela liberdade mais do que pela própria vida.2

Depois deste pensador, Cristo ensinou que não existe “início”, como dizem os gnósticos, Deus é infinito, não há princípio nem fim, ademais existe somente um Deus. É bom, não comporta partições, é simples no sentido de unidade, personificação, cuja vontade difusora de amor criou a matéria. No Cristianismo a matéria é dom, essencialmente boa, por isso a defesa da vida é a primeira lei natural.

No cristianismo a liberdade é valor fundamental. Esta é uma das mensagens advindas da crucificação de Cristo, que além da revelação de fé, sobre ressureição de corpo e alma para os que se empenham em viver a ordem de valores por ele ensinada, nos ensina que a liberdade, inclusive direito de expressão da verdade, exige coragem e grandeza de personalidade. O Homem deve empenhar-se na vivência das virtudes.

O gnosticismo pagão se infiltrou na igreja de Cristo através de diversas seitas inclusive dos maniqueístas e sobretudo dos cátaros. Estes pregavam a mortificação do corpo, a autoflagelação, eram contra o casamento pois produzia mais matéria, os filhos3, novos cárceres da alma, centelha divina aprisionada. Nessas circunstâncias, achavam preferível o amor livre e matavam mulheres, sobretudo as grávidas4.  

Profanavam os templos e cultos católicos pois não aceitavam a existência humana como um bem, nem que Deus houvesse se encarnado em Jesus.  O suicídio era o ponto alto da doutrina cátara como forma de libertação da partícula divina presa na carne. Violavam a primeira lei natural, basilar para o catolicismo: preservação da vida.

Sua conduta produzia indignação social e reações em que tanto os cidadãos quanto o poder político secular, os agrediam e matavam violentamente. A desagregação social que produziam era tamanha que há quem defenda que se sua doutrina se tornasse universal devia levar a extinção da raça humana5.

Os cátaros marcaram vivamente o simbolismo da realidade material do homem como um mal, cuja malignidade era insuperavelmente maior na mulher em face de sua natural fecundidade, capacidade de reprodução. A doutrina era oposta à orientação católica de elevada distinção da dignidade da mulher, que o Novo Testamento traz a lume através do escrito descritivo do primeiro milagre de Jesus Cristo.

Nesta oportunidade, a mãe de Jesus, ao pedir-lhe que intercedesse pois havia faltado vinho na festa onde estavam, Este respondeu: “Mulher, o que existe entre nós? Minha hora ainda não chegou.”. De imediato, atende seu pedido e transforma água em vinho.

Ao enfatizar a palavra mulher, Jesus revela e ressalta que a mulher é capaz de dar causa à vontade divina de realização do bem, tem força suficiente para vencer obstáculos: “minha hora ainda não chegou”. O pedido de uma mulher move a vontade de Deus.  A simbologia da mulher transmuta-se de subserviência ao maligno, comum às ideologias gnósticas, para a intercessora de bênçãos junto a Deus Filho.

Os movimentos sociais que posteriormente expressaram a igualdade entre homens e mulheres, inicialmente em face da lei e posteriormente em direitos e obrigações, assim como proteções específicas relativas a maternidade, partem da orientação Cristã. Assim também as normas constitucionais proibitivas de qualquer tipo de discriminação do ser humano.

Foto: Reprodução/Maria Cecília Carnaúba
Cátaros, Políticas sociais, Preconceitos e Constituição

Seguiram-se a estes movimentos as inserções normativas constitucionais de reconhecimento de igualdade, entre homens e mulheres, de modo que a variação de sexo é acidental, incidente sobre uma mesma substância denominada espécie humana6. A igualdade de que tratam as normas modernas, em especial a Constituição brasileira, é a igualdade essencial. Nesta senda, reza o inciso I, artigo 5º que reconhece a igualdade, em direitos e obrigações, para homens e mulheres.

É esta mesma essencialidade comum à espécie humana que autoriza a Constituição da Republica de 1988 a reconhecer, no artigo 5º, que todos são iguais perante a lei. Refere-se à igualdade essencial da qual são acidentes a cor da pele, o comportamento religioso a forma de exercício da liberdade individual etc.

Enfim, o Estado brasileiro registra, na Constituição, a herança ancestral ocidental que se estruturou através da transposição do paganismo grego para o cristianismo. É este o fundamento de sua orientação sistêmica de respeito à dignidade humana como espécie.

Esta cosmovisão que se crava na Constituição brasileira e traz como elemento a confiança na autonomia individual para gestão do próprio destino, tem o mesmo sentido utilizado pela União Europeia e expresso em um de seus documentos gerentes de desenvolvimento econômico: apoio aos compromissos de geração de emprego e estímulo à aprendizagem para que o crescimento individual seja resultado do esforço próprio de superação das dificuldades individuais7 e motor do desenvolvimento nacional.

Nesta linha de entendimento, a Constituição da República Federativa do Brasil estabelece, no inciso IV, artigo 1º que o trabalho e a livre iniciativa são fundamentos do Estado e associa a esta premissa o objetivo de Estado de desenvolvimento nacional na forma do inciso II, artigo 3º.

O artigo 3º da Constituição da República traz como único instrumento de ação, para alcance dos objetivos de Estado, o desenvolvimento nacional, é de se entender que os demais objetivos serão alcançados através dele. Nesta linha, o objetivo estatal de solidariedade, expresso no mesmo dispositivo, também se subsume ao instrumento de desenvolvimento nacional.

O que se impõe ao Estado, objetivamente, é o desenvolvimento. Este, abriga o fomento à geração de empregos, ao livre empreendedorismo, ao sistema de aprendizagem, à estabilidade emocional através da harmonia social e segurança, bem como o cuidado com a saúde.

É fundamental ter em mente a realidade atestada historicamente de que o desenvolvimento sócio/econômico somente se potencializa impulsionado pelo aumento da diferenciação acidental. Esta observação produziu a assertiva de que a evolução cultural, com a civilização dela decorrente, trouxeram a diferenciação, riqueza crescente e grande expansão da espécie humana8.

Nestas condições, o dever estatal de promoção do desenvolvimento nacional para geração da sensação de bem-estar interno exige o fortalecimento da percepção individual de igualdade essencial, simultaneamente, com o favorecimento à diferenciação acidental. É a realidade que se apresenta como condição de execução de qualquer competência Estatal de desestímulo à discriminação estabelecida pelo inciso IV, artigo 3º da Constituição.

Por seu turno, o dever de facilitação da aprendizagem inclui o favorecimento do acesso a informações técnicas, associadas ao fomento do reconhecimento da igualdade essencial da espécie humana, tanto quanto o crescimento da virtuosidade humana. É assim por causa da revelação, efetivada pela História de que a moralidade, reflexo de condutas virtuosas, foi o elemento determinante para a civilização atual, pois foram os grupos que seguiram suas regras que conseguiram multiplicar-se e enriqueceram em relação a outros grupos9.

O estímulo, do Estado, ao fortalecimento da virtuosidade humana é condição de desenvolvimento nacional que coopera para a construção da justiça social estabelecida pelo inciso I, artigo 3º da Constituição. O dever de desenvolvimento da virtude humana é imperativo civilizacional e condição de realização do objetivo Estatal de superação de preconceitos como determina inciso IV, artigo 3º da Constituição.

Ao Estado brasileiro, por imposição constitucional, compete edificar um ambiente interno favorável ao progresso individual, técnico e de caráter, resultante do empenho próprio de cada cidadão. O fomento ao crescimento individual é atividade de Estado basilar para geração do desenvolvimento nacional, como decorrência natural do esforço conjunto da população brasileira “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, parágrafo único, artigo 1º da Constituição brasileira.

Para realizar os ensinamentos da História, as políticas públicas e ações de grupos privados fundadas em diferenças acidentais precisam ser desestimuladas e substituídas por outras que fortaleçam a igualdade essencial. O sistema normativo orienta para o estímulo à aprendizagem técnica associada ao crescimento das virtudes humanas, pois o que gera bem-estar individual, harmonia social e prosperidade é a cooperação de todos com base na confiança advinda da virtuosidade do comportamento humano.

É importante despregar-se das garras da contradição de ressaltar a diferença acidental com o discurso de promoção do bem de todos. O bem comum somente repousa no colo da igualdade essencial, única possibilidade de igualdade humana nesta terra e único caminho de destruição das discriminações.

Os símbolos da doutrina cátara ainda estão vivos no mundo moderno, escondem-se e revelam-se em imagens, obras de expressão plástica, interpretações de teatro, música e que, subliminarmente, ressaltam diferenças acidentais dos seres humanos como instrumento de geração de antagonismo social.

A associação da imagem da mulher à malignidade é apenas um exemplo da vitória do vício da crueldade, estimulado através do fortalecimento das desigualdades acidentais como fundamento para desavenças, sobre o mandamento cristão de caridade humana, alcançável apenas com o desenvolvimento equilibrado da virtuosidade individual. Este movimento parte, necessariamente, do reconhecimento e fortalecimento da igualdade essencial da espécie humana.

As políticas, ou legislação infraconstitucional, de suporte social precisam evitar vivamente fundar-se em desigualdades humanas acidentais e permanentes para passar a apoiar-se em realidades transitórias, que permitam mobilidade dos integrantes dos grupos beneficiados. São exemplo deste segundo tipo os habitantes de determinados espaço, as pessoas que se encontram desacompanhadas no sustento de suas famílias etc.

As normas infraconstitucionais e políticas públicas, ou privadas, fundadas em desigualdades humanas acidentais permanentes são desagregadoras porque apoiam-se sobre o binômio algoz/vítima. São contrárias ao objetivo estatal de desenvolvimento nacional, porque essencialmente discriminativas. A premissa sob que se fundam nega diretamente o reconhecimento da igualdade essencial do homem.

O discurso de redução de desigualdades sociais e da discriminação através de ações de avivamento das desigualdades acidentais do homem é contradição interminável. Tal comportamento labora sobre o engano, esconder-se em promessas de correção de circunstâncias históricas ou condição social quando o resultado por elas produzido é a animosidade interna entre os cidadãos.

Tais ações atraiçoam, porque prometem o que, potencial e intencionalmente, não são capazes de concretizar. Findam por aprisionar à infindável dependência do Estado, os indivíduos para quem dizem buscar tutela. Entrava-lhes a dignidade e a confiança individual na própria capacidade de superação da realidade desvantajosa.

Nestas circunstâncias, para alcance do desenvolvimento nacional, o sistema constitucional determina que a realização dos objetivos de Estado se operem através da utilização de instrumentos verdadeiramente capazes de concretizá-los. São os recursos, reafirmativos da dignidade humana, fundados no reconhecimento da essencialidade igual do homem, em sua capacidade individual de superação de dificuldades e de contribuição para o desenvolvimento comum.

O engano, mentira e a traição que se escondem na base das ações que se pretendem redutoras da discriminação e das desigualdades sociais, mas se fundam no fortalecimento das desigualdades acidentais permanentes, surpreendentemente estão presentes na etimologia da palavra diabo. Para os gregos, diábolos é aquele que engana, traiçoeiro, e para os latinos diabolus é o espírito da mentira, personificação do mal10.

Será por esta causa que a Constituição da República é avessa às ações e políticas de fortalecimento das desigualdades acidentais permanentes?  Ou será, simplesmente, porque o constituinte conhecia a doutrina gnóstica de que a partição dos essencialmente iguais os transforma em opostos e provoca a desintegração da divindade?

Será que nossa Democracia constitucional resiste a partições dos essencialmente iguais?

Deus nos ajude!

Maria Cecília Pontes Carnaúba - é promotora de Justiça de Alagoas, mestra em Direito (UFPE), doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (PT); autora do livro “Provas Ilícitas” publicado pela Editora Saraiva, além de diversos artigos jurídico-científicos. É detentora do Blog: https://www.ceciliacarnauba.com.br

Fonte: JTNEWS

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