A escritora e filósofa Adela Cortina (nascida em Valência, Espanha, em 1947) tem, entre suas muitas realizações, a de ter levado à língua espanhola um termo que a Real Academia da Língua adotou para definir o ódio aos indigentes, a aversão aos desfavorecidos.
E é precisamente esse termo que abre o título de seu último, Aporofobia, el rechazo al pobre (Aporofobia, a rejeição ao pobre, em tradução livre). Nascida em Valência, Espanha, em 1947, Adela é doutora honoris causa por diversas universidades, membro da Real Academia de Ciências Morais e Políticas de Espanha (foi a primeira mulher em fazer parte dessa instituição), professora emérita de Ética da Universidade de Valência e diretora da fundação Étnor.
Ela concedeu entrevista à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, no Hay Festival Arequipa 2020, no Peru, um encontro virtual de escritores e pensadores.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
BBC Mundo - Você cunhou há mais de 20 anos o termo "aporofobia", reconhecido pela Real Academia da Língua e incluído em seu dicionário. Como surgiu? De onde vem etimologicamente?
Adela Cortina - O termo "aporofobia" vem de duas palavras gregas: "áporos", o pobre, o desamparado, e "fobéo", que significa temer, odiar, rejeitar. Da mesma forma que "xenofobia" significa "aversão ao estrangeiro", aporofobia é a aversão ao pobre pelo fato de ser pobre.
E a palavra surgiu da forma mais simples, quando percebemos que não rejeitamos realmente os estrangeiros se são turistas, cantores ou atletas famosos, rejeitamos se eles são pobres, imigrantes, mendigos, sem-teto, mesmo que sejam da própria família.
BBC Mundo - Por que é importante que haja uma palavra para denominar o ódio aos sem-teto?
Cortina - Porque as pessoas precisam dar nomes às coisas para reconhecer que existem e identificá-las; ainda mais se forem fenômenos sociais, não físicos, que não podem ser apontados com o dedo.
Nomear a rejeição aos pobres permite-nos tornar visível esta patologia social, investigar as causas e decidir se concordamos que continue a crescer ou se estamos dispostos a desativá-la por nos parecer inadmissível.
BBC Mundo - A aporofobia é um fenômeno especialmente de nossos tempos, em que o sucesso e o dinheiro são concebidos por muitos como valores supremos?
Cortina - Infelizmente, a aporofobia sempre existiu, está nas entranhas do ser humano, é uma tendência universal.
O que acontece é que algumas formas de vida e algumas organizações políticas e econômicas promovem a rejeição aos pobres mais do que outras.
Se em nossas sociedades o sucesso, o dinheiro, a fama e o aplauso são os valores supremos, é praticamente impossível fazer com que as pessoas tratem todas as pessoas igualmente, reconhecendo-as como iguais.
BBC Mundo - Como a aporofobia se manifesta na sociedade? Você pode nos dar alguns exemplos?
Cortina - Claro. Imigrantes e refugiados não são bem-vindos em todos os países, inclusive alguns partidos políticos ganham votos quando prometem fechar suas portas.
Tratamos com muito cuidado pessoas que podem nos fazer favores, nos ajudar a encontrar um emprego, ganhar uma eleição, nos apoiar a vencer um prêmio e abandonamos aquelas que não podem nos dar nada disso.
A sabedoria popular diz que você deve trocar favores em frases como "hoje por você, amanhã por mim", e os pais muitas vezes aconselham seus filhos a se aproximarem de crianças em melhor situação. O bullying escolar é um exemplo de aporofobia.
BBC Mundo - De onde vêm a aversão e o medo dos pobres, de que se alimenta a aporofobia? É algo biológico, neuronal ou cultural?
Cortina - Para colocar em uma palavra muito bonita e muito apropriada, é biocultural.
A evolução do nosso cérebro e da nossa espécie é biológica e cultural, ambas as dimensões estão interligadas, influenciam-se mutuamente.
No caso da aporofobia, existe uma base biológica, uma tendência a colocar o que não interessa entre parênteses, o que pode ser reforçado pela cultura ou desativado, cultivando outras tendências, como simpatia ou compaixão.
BBC Mundo - Você argumenta que a aporofobia é universal e que todos os seres humanos são aporófobos. Em que você baseia essa afirmação?
Cortina - No fato de a antropologia evolutiva mostrar que os seres humanos são animais recíprocos, estão dispostos a dar aos outros, mas desde que recebam algo em troca, seja da pessoa a quem deram ou de outra em seu lugar.
Este mecanismo tem sido denominado "reciprocidade indireta" e é a base biocultural de nossas sociedades contratuais, tanto políticas quanto econômicas.
Estamos prontos para cumprir nossos deveres se o Estado proteger nossos direitos, estamos prontos para cumprir nossos contratos se outros o fizerem.
Mas quando há pessoas que parecem não conseguir nos dar nada de interessante em troca, nós as excluímos desse jogo de dar e receber. Esses são os pobres, os excluídos.
BBC Mundo - As religiões tradicionalmente pregam em favor dos pobres. O catolicismo garante, por exemplo, que deles será o reino dos céus, e o papa Francisco está constantemente mostrando seu apoio aos pobres. A crise das religiões está relacionada à aporofobia?
Cortina - Mais do que uma crise de religiões, eu falaria sobre o fato de que, com algumas exceções, vivemos em sociedades pós-seculares.
Nelas, o poder político e o religioso não se unem, o que é excelente, porque então o pluralismo é um fato, mas as religiões não desapareceram, continuam a ser fonte de vida e de sentido para muitas pessoas e para muitos grupos sociais.
Até mesmo seus valores, junto com outros, estão na raiz dos valores da ética cívica nesses países.
Quanto ao cristianismo, efetivamente aposta em todos os seres humanos e no cuidado da natureza, mas por isso mesmo, num mundo onde há ricos e pobres, faz uma opção preferencial pelos pobres, exigindo que eles sejam fortalecidos para que possam sair da pobreza.
BBC Mundo - A pandemia de coronavírus e a crise econômica que ela desencadeou podem aumentar a aporofobia?
Cortina - Por um lado, sim, porque quando as pessoas se encontram em situações de incerteza e medo, tendemos a fechar-nos em nós mesmos. Mas, por outro lado, o que a pandemia está mostrando é que foi a solidariedade que salvou vidas e evitou mais sofrimento.
Mostrou que somos interdependentes, e não independentes, que o apoio mútuo é o que nos salva. E essa força de solidariedade e compaixão é o que deve ser cultivado como o melhor aprendizado com a pandemia.
BBC Mundo - Você acha que a rejeição aos pobres está por trás da onda de xenofobia que nos últimos anos atingiu os Estados Unidos e a Europa? Se sim, por quê?
Cortina - Porque quando a situação política e econômica é ruim, buscam-se bodes expiatórios e os estrangeiros pobres são bodes expiatórios. Fechar as portas para eles, garantir que sejam um perigo e defender os de dentro contra os de fora é a tática dos supremacistas. Mas principalmente diante dos pobres.
BBC Mundo - Você considera que Donald Trump sofre de aporofobia? É possível que muito de seu sucesso político resida precisamente em sua aporofobia?
Cortina - Sim, acho que sim, e o mais triste é que isso gera votos. Ele não é um personagem extravagante e perturbado, mas um que sabe perfeitamente que muitas pessoas concordam com ele e, com isso, reforça sua aporofobia.
Veremos o que acontecerá na eleição e esperamos que a estratégia não dê bons resultados. Mas o pior é que Trump não é um caso isolado.
Em cada um de nossos países, o supremacismo nacionalista rejeita os que estão em pior situação e essa tática lhes dá votos. No século 21, devemos reverter essa tendência.
A aporofobia ameaça a democracia porque viola a igual dignidade de todas as pessoas, exclui os pobres, os que parecem não ter o que trocar.
É radicalmente excludente, quando a democracia deveria ser inclusiva.
BBC Mundo - E qual dano a aporofobia causa a quem sofre dessa patologia social? Estamos cientes de que somos aporofóbicos?
Cortina - Não estamos. Por isso é necessário falar sobre essa patologia na esfera da opinião pública e tentar descobrir em que medida a aporofobia está envolvida em nossas vidas.
Felizmente, existem grupos trabalhando nesse sentido, jovens realizando projetos de licenciatura, mestrado e projetos de pesquisa sobre aporofobia.
BBC Mundo - A aporofobia também se manifesta entre países? Os estados mais ricos mostram aversão aos mais pobres? E dentro dos países pobres também há aporofobia ou é mais prevalente nos países ricos?
Cortina - Claro, os países procuram a ajuda dos mais poderosos e isso explica, por exemplo, que se aproximem da China, esquecendo que o país não quer falar de direitos humanos.
E, dentro de cada país, acredito que em todos eles há também uma tendência de se afastar dos em situação pior, tratá-los como leprosos, no sentido bíblico da palavra.
BBC Mundo - Como a aporofobia pode ser combatida?
Cortina - Percebendo que ela existe e que não é apenas uma questão econômica, mas a rejeição dos piores colocados em cada situação.
Creio que se luta construindo instituições baseadas na igualdade de valor das pessoas, e educando no respeito pela dignidade de todas elas, e não só com palavras, mas também mostrando no dia a dia que nos reconhecemos e nos sentimos igualmente dignos.
Fonte: JTNEWS com informações da BBC News/Brasil