Você chega ao consultório com dados que achou na internet. O médico, em vez de te ouvir, não te deixa sequer terminar a frase. "Onde leu isso? Quem te disse? Doutor Google não faz diagnóstico". Outro caso clássico é quando suas queixas são minimizadas. As reações podem ir de um riso irônico a comentários do tipo "isso aí nem é problema".
Situações assim, em que médicos hostilizam pacientes, são bastante comuns. E Priscila Bortolozzo Lüdke, 28, artesã, sentiu na pele. Ao procurar uma ginecologista após sua menstruação ter atrasado, foi chamada de incompetente pela médica por ter se esquecido de tomar a pílula anticoncepcional.
"Ela gritava comigo como se eu fosse uma criança: 'Está na bula do seu remédio. Você não sabe ler a bula?'", lembra Lüdke.
Enfrentar esse tipo de conflito passa por entender suas raízes sociais e históricas. Conforme explicam os pesquisadores Fernando Luiz Pagliosa e Marco Aurélio Da Ros em um artigo publicado na Revista Brasileira de Educação Médica, o modelo de medicina que hoje vigora no Ocidente ainda se pauta em uma estrutura educacional elitizada e mais focada em aspectos técnicos do que propriamente humanos.
Uma das bases dessa abordagem é o relatório do norte-americano Abraham Flexner, que no início do século 20 estabeleceu parâmetros para definir a formação médica. À época, não havia necessidade de concessão estatal para o exercício da medicina nos Estados Unidos e diferentes práticas terapêuticas tinham ampla aceitação social.
Buscando dar um caráter científico à área, Flexner criou um documento que possibilitou regulamentar as escolas médicas com base na racionalidade. A sistematização foi positiva do ponto de vista técnico. Por outro lado, afastou a medicina do foco na pessoa.
Começa ainda na faculdade
Outra mudança desse período foi a elitização da carreira. "Flexner via a educação médica como destinada a pessoas da elite, com o aproveitamento dos mais capazes, inteligentes, aplicados e dignos", explicam os pesquisadores.
Trazendo essa perspectiva para um contexto recente, em que médicos ainda hostilizam pacientes no consultório, é possível entender o quanto essa agressividade fala de relações de poder.
O foco prático passou a guiar a formação médica em países do mundo todo. Segundo a professora Magda Moura de Almeida, do Departamento de Medicina da UFC (Universidade Federal do Ceará), percebe-se que uma densa carga horária focada em aspectos teóricos aliada a um clima de competição pode desumanizar o estudante já durante sua formação.
"Quando o aluno vê um educador que é referência em sua área submeter estudantes a situações humilhantes e de profundo estresse, acaba entendendo que aquele é o caminho certo e que aquilo é ser um bom profissional", exemplifica.
Não é raro que esse clima forme médicos agressivos até mesmo entre si. Segundo um estudo publicado pela revista inglesa Clinical Medicine, 31% deles estão sujeitos a comunicação grosseira, depreciativa e agressiva em seu meio de trabalho.
Hostilidade em xeque
Diante desse contexto, os currículos das faculdades de medicina estão ganhando matérias ligadas à comunicação, empatia e acolhimento, segundo Rafael Herrera Ornelas, coordenador médico da saúde populacional do Hospital Israelita Albert Einstein (SP). Além disso, muitos eventos e publicações no setor têm levantado esse debate.
De acordo com o especialista, aprimorar o diálogo nos consultórios é importante sobretudo em um momento em que notícias falsas são veiculadas na internet. "É preciso argumentar com os pacientes, mas primeiro é necessário ouvir o que eles têm a dizer", ressalta Ornelas.
Bárbara Luiza Rosa, ciretora do Departamento de Desenvolvimento Profissional Contínuo da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade), lembra que saber por que o paciente trouxe determinada informação pode até ser determinante para o diagnóstico.
"Às vezes a pessoa quer determinado exame porque viu na internet que pode ter câncer. Investigando mais a fundo, você descobre que ela está angustiada porque viu o vizinho morrer da doença", exemplifica.
Além disso, a falta de escuta tende a levar um tratamento ao fracasso. "Uma consulta é uma espécie de contrato social, com o qual o paciente precisa concordar. Se ele não se sentir acolhido, terá dificuldade de se abrir e o acompanhamento será mais difícil", complementa Almeida.
Então, o que fazer?
Ao se deparar com um médico hostil, é preciso entender que não há problema em apresentar seus sintomas ou levar dados que leu na internet. Problema é o profissional não te ouvir.
Assim, busque sempre analisar se o especialista escutou bem o que você queria dizer. Em algum momento ele minimizou sua dor? Causou algum desconforto? Menosprezou as informações e dúvidas apresentadas no consultório? E lembre-se: nenhuma pergunta é boba demais quando se trata da sua saúde.
Caso sinta que não recebeu a atenção necessária, a primeira coisa a se fazer é expressar seu descontentamento ao próprio profissional. "Às vezes, por conta do biopoder que o médico tem em mãos, o paciente não se sente seguro para fazer isso. Mas a insatisfação deve ser manifestada, para o bem de ambos", diz Almeida.
É possível também procurar a ouvidoria do hospital ou serviço de saúde para fazer uma reclamação formal. Mas elogios também devem ser comunicados. "Quando se reforçam atendimentos humanizados, eles vão ficando mais comuns em nossa sociedade. Isso é muito importante para promovermos uma transformação", acrescenta.
Outra coisa a se fazer após um atendimento hostil é deixar um feedback em perfis profissionais do médico, utilizando ferramentas como o Doctoralia ou o Google. Foi o que fez Lüdke assim que saiu da clínica da ginecologista. Se a experiência médica foi mal sucedida na escuta, o contrário aconteceu nos fóruns online.
"Estava me sentindo muito humilhada, mas quando contei o que vivi na internet, as pessoas me acolheram e isso me ajudou a ficar melhor", lembra.
Um estudo publicado na revista Anais de Medicina de Família mostra que, mais do que uma receita médica, o processo de cura está intimamente ligado à empatia. Casos como o de Priscila estão aí para nos lembrar disso.
Fonte: JTNEWS com informações do Viva Bem