Cultura

Ser pobre é...; por Flávio de Ostanila

"A inópia é tão cruel e vigorosa, que nem sempre a arte - com todas as cores, musicalidade e figuras de estilo - consegue suprimir sua perversidade, tampouco suavizar sua robustez".

Foto: ZÉ PAULO/JTNEWS
Flávio José é agente penitenciário e escritor (FOTO PARA DESTAQUE)

"E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina".
 
MORTE E VIDA SEVERINA, João Cabral de Melo Neto. 

Famílias pobres brasileiras levariam nove gerações para alcançar renda média, diz OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Isso é o que o estudo chama de "chão pegajoso" (sticky floor): a dificuldade de famílias de baixa renda saírem da pobreza. 

Foto: Zé Paulo/JTNews
Flávio José [ou Flávio de Ostanila] é policial penal, professor e escritor

Se há uma certeza na vida dos nascidos desafortunados é a de que morrerão desvalidos. Entretanto existe um método indiscutivelmente infalível de fazer cessar a penúria em sua vida - não procriar -, a exemplo do que disse o defunto-autor em Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance de Machado de Assis: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria".

Pai pobre, filho pobre. É essa a regra, embora nada seja tão ruim que não possa piorar. No País, 27 milhões de pessoas estão abaixo da linha de pobreza. Equivale a quase o triplo da população de Portugal na miséria. Indivíduos suficientes para se proclamar uma nação à míngua - Miserequistão -, com o lema "Fome acima de tudo, famintos acima de todos!".

A meu ver, ser pobre é uma questão de teimosia. A vida deve achar o pobre bem indesejável, mas ele insiste em respirar. E quando a morte o ronda, o infeliz nem sequer morre em paz: está cheio de cobradores em sua porta e com pagamentos, inclusive da assistência funerária, atrasados. Nessa total falta de condição até para fenecer, é cômico ouvir Arnaldo Antunes cantar "A gente não quer só comida/A gente quer bebida/Diversão, balé/A gente não quer só comida/A gente quer a vida/Como a vida quer". Fala sério! 

Como cresci desnutrido, nutri farta ojeriza à paupérie. Se eu tivesse este poder, outorgaria uma constituição com apenas dois artigos: 1° É proibido ser pobre; 2° Revogam-se as disposições em contrário. Lembro-me da infância, nada saudosa, em que eu pedia comida a minha mãe, uma sofredora e renitente lavadeira de roupa; e ela - dilacerada por não poder alimentar os filhos -, com voz embargada, me dizia: "Pois vá dormir, que a fome passa!".

Ser pobre é - além de indigno, deplorável e infame - desenxabido, triste, deselegante, feio. Pobreza só tem graça nas falas de Caco Antibes - personagem do ator Miguel Falabella, do Sai de Baixo, programa dominical da TV Globo exibido entre os anos de 1996 e 2002. Pobreza faz rir apenas no quadro Primo Pobre e Primo Rico, estreado no rádio (1950) e na televisão (1968), protagonizado pelos atores Brandão Filho e Paulo Gracindo. Pobreza apresenta requinte unicamente nos filmes com Carlitos - criação do inglês Charles Chaplin, famoso nas primeiras décadas do século XX.  Pobreza expressa beleza somente em pinturas como Retirantes, de Candido Portinari. 

A inópia é tão cruel e vigorosa, que nem sempre a arte - com todas as cores, musicalidade e figuras de estilo - consegue suprimir sua perversidade, tampouco suavizar sua robustez. No romance Vidas Secas, do alagoano Graciliano Ramos, o episódio em que Fabiano e sua família comem o papagaio de estimação é de fazer chorar o mais insensível leitor. Esse fragmento orna com a história de Ostanila, minha mãe, tendo que vender seu pássaro para dar de comer a mim e  mais oitos irmãos. 

Na vida de verdade, muitas vezes ser pobre é precisar andar no encalço de um rico, porque "atrás do pobre corre um bicho"; e, como negativa do tipo deboche, ter que ouvir do abastado que "atrás do rico, corre um pobre e um bicho".

Apesar deste texto incisivo, ser pobre não pressupõe ser maldotado de tolerância a ponto de presumir que eu, modesto autor, padeça de aporofobia. No mais, segundo o compositor Belchior: "Não se preocupe meu amigo/Com os horrores que eu lhe digo/Isso é somente uma canção/A vida realmente é diferente/Quer dizer/Ao vivo é muito pior".

Sarcasmo à parte, é possível que algum desavisado, numa probabilidade muito improvável, mude o enredo da malfadada saga da pobreza. Para o alento (ou inveja, ou ódio) dos desventurados, cito Francisco das Chagas de Sousa. De vendedor de sacolé, no Bairro Bomba, a vereador do município de Picos, no Piauí. Da direção de uma caixa de isopor à presidência de uma casa legislativa. 

Retomando o viés artístico, portanto romântico, desta crônica, recorro ao episódio em que Chaves, criação do multifacetado Roberto Gómez  Bolaños, do México, vai a Acapulco, um balneário frequentado pela alta sociedade. O que seria, na realidade, inalcançável para uma criança abandonada. 

Porque ser pobre é não poder passear... Mas também é, segundo Lucas - Bíblia Sagrada, capítulo 6, versículos 20 e 21 -, a promessa de uma viagem eterna e, de quebra, uma vida sem perrengues: "Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus! Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados! Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque havereis de rir!".

Por fim, ser pobre é... acreditar em algo, qualquer coisa, pois ao despossuído não lhe resta mais nada.

Flávio José Pereira da Silva [Flávio de Ostanila] é policial penal, escritor, bacharel em Direito e professor de Língua Portuguesa.

Confira AQUI a última crônica do autor publicada com exclusividade pelo JTNEWS.

Fonte: JTNEWS

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