"Uma criança tem que morrer na África para que alguém tenha um telefone celular; uma criança da Ásia tem que morrer para você poder colocar seu vestido chique", disse Sophie Achieng Otiende no auditório superlotado no auditório de uma escola da cidade suíça de Davos, durante o Fórum Econômico Mundial. O público escutava com atenção fascinada.
Sobrevivente do tráfico humano, a queniana conhece bem demais os horrores do trabalho forçado. Ela foi obrigada pelo tio e sua família a trabalhar como doméstica. Sujeita a abuso físico e sexual quase diariamente durante quase dez anos, ela chegou à beira do suicídio.
Por sorte, a resiliência de Otiende suplantou seus instintos suicidas, e ela conseguiu romper as cadeias da servidão. Hoje trabalha na ONG Awareness Against Human Trafficking (HAART Kenya), sediada em Nairóbi, instilando em outros sobreviventes a noção de "também eles podem viver uma vida plena".
Ela sobreviveu, mas estima-se que 40 milhões – alguns grupos de direitos humanos chegam a falar de espantosos 200 milhões – permanecem escravizados por todo o mundo, muitos deles se extenuando para fazer aqueles jeans baratos que vestimos, ou pescar o peixe que vai parar em nossa mesa de jantar.
Segundo James Cockayne, diretor do Centro de Pesquisa de Políticas da Universidade das Nações Unidas, a escravidão moderna é "resultado de uma falha do mercado": "É o resultado de não darmos um preço aos custos sociais da forma como conduzimos nossas economias e nossas vidas. Significa que não estamos realmente pensando nos reais impactos sociais de longo prazo da nossa exploração ilegal do trabalho."
Difícil combate
Calcula-se que a escravidão moderna gere cerca de 150 bilhões de dólares de lucros a cada ano, em escala mundial, tornando-se o terceiro maior crime global, depois do narcotráfico e do contrabando de bens falsificados.
Trabalhos domésticos, construção e manufatura são os setores com maior incidência de trabalho forçado, mas a gama vai da agricultura e pesca aos serviços pessoais, mineração e mendicância.
A prática ocorre em praticamente todos os países, independente do grau de desenvolvimento econômico. Dos 40 milhões de vítimas da escravidão, 25 milhões fazem trabalhos forçados, enquanto as demais estão em casamentos forçados, e quase três de cada quatro são meninas ou mulheres.
O método primário de escravização no setor privado é o endividamento, em que as vítimas são coagidas a pagar um empréstimo com a própria mão de obra. Na maioria dos casos, elas têm que assinar contratos ilegais, os quais costumam ser apresentados como álibi quando as autoridades intervêm.
"Construímos um ecossistema que promove exploração onde é lucrativo abusar de outros", explica Otiende. "Vamos ter que reverter esse sistema e pensar um novo, em que na verdade as pessoas sejam importantes, não porque haja dinheiro, mas simplesmente porque são gente."
Especialistas defendem que tecnologias como a inteligência artificial (IA) e blockchain podem desempenhar um papel gigantesco no enfrentamento da moderna escravidão – e já se veem alguns brotos dessas iniciativas.
Uma ferramenta desenvolvida para Marinus Analytics, baseada nos Estados Unidos, emprega IA, como por exemplo, reconhecimento facial, para ajudar os agentes da lei a identificarem vítimas de tráfico de pessoas e a desbaratar quadrilhas de crime organizado.
Segundo a companhia, em 2018 a ferramenta Traffic Jam, utilizada por agências policiais nos EUA, Canadá e Reino Unido, ajudou a identificar 3 mil vítimas de tráfico sexual.
A Diginex, sediada em Hong Kong, planeja empregar a tecnologia de blockchain para ajudar a prevenir a exploração de trabalhadores migrantes e promover o recrutamento ético.
A britânica Universidade de Nottingham, por sua vez, utiliza IA para analisar imagens de satélite, mapeando as regiões mais vulneráveis ao trabalho forçado.
"Usando essas técnicas, é mais fácil encontrar os locais de trabalho onde é mais provável a ocorrência da escravidão moderna, permitindo-nos mobilizar nossos recursos de forma mais efetiva para ajudar a essas pessoas", explica Cockayne.
Armadas com dados, as autoridades estão numa melhor posição para punir os infratores. Como exemplo, Cockayne cita o fundo de aposentadoria do governo da Noruega, que se desligou de 33 companhias de óleo de palma, após descobrir que elas recorriam a cadeias de suprimento de trabalho ilegal.
Monitorando a própria "pegada de escravidão"
Ativistas alertam que as novas tecnologias não são uma fórmula rápida para consertar o problema, frisando que a maioria delas está sendo desenvolvida e usada no mundo desenvolvido, onde a escravidão moderna não é tão difundida quanto nos países em desenvolvimento.
"Uma das lacunas que vejo, é os dados serem coletados num lugar, e sintetizados e analisados em outros, e que quem os coleta não dispõe das ferramentas ou da capacidade para coletá-los", critica Otiende.
Essa falha na coleta significa que "os dados que estamos estudando não são corretos". "Portanto precisamos dar poder às comunidades e a quem está realmente cuidando das vítimas do tráfico para que coletem os dados corretos."
Enquanto os governos fazem sua parte, especialistas afirmam que os consumidores – cúmplices desavisados da escravidão – podem desempenhar um papel chave na erradicação da servidão, monitorando a própria "pegada de escravidão".
Há diversos websites e aplicativos que ajudam os usuários a identificarem quantos escravos estão trabalhando para eles, ou quantas "horas de escravos" são necessárias para sustentar seu estilo de vida, ao analisar a cadeia de suprimento dos produtos que usam e consomem, a fim de determinar sua pegada.
"Da mesma forma como perguntamos 'qual é minha pegada de carbono', devemos perguntar 'qual é minha pegada de escravidão'", afirma Cockayne. "Precisamos fazer a mesma pergunta a todas as empresas em que confiamos. Então, quando compramos jeans: o que foi feito com trabalho forçado? Quando compramos ração para nossos cães e gatos: ela inclui peixe pescado por gente escravizada em barcos pesqueiros em alto-mar? Precisamos fazer muito mais para compreender nossa própria pegada de escravidão, antes de começarmos a enfrentar o problema."
Fonte: Deutsche Welle