“Você sabe com quem está falando?”
O Brasil e a carteirada nossa de cada diaEm menos de um mês, os celulares registraram dois flagrantes de uma velha conhecida do brasileiro, a carteirada.
O primeiro “você sabe com que está falando” aconteceu no Rio de Janeiro, no começo de julho. Final de noite, temperatura agradável e os bares reabertos. Os três fatores provocaram grandes aglomerações na capital fluminense. Muita, mas muita gente mesmo na rua, em frente aos bares, conversando com a cerveja na mão e nenhuma máscara. Claro, afinal não dá para beber de máscara...
Os agentes públicos, cumprindo a função, saíram para vistoriar o respeito dos decretos municipais que estabelecem limite de pessoas em 30% da capacidade do estabelecimento e o distanciamento de 2 metros entre os clientes. Mas como definir o limite de pessoas nas calçadas e nas ruas? Foi aí que o agente, ao tentar chamar a atenção de alguém na frente do bar, no bairro da Barra da Tijuca, o chamou pelo termo de cidadão. A esposa, ao lado, bastante irritada, corrigiu: - “Cidadão, não! Engenheiro Civil! Formado, melhor do que você”.
O vídeo correu o Brasil e ela perdeu o emprego na empresa Taesa, de energia. O marido também afirma ter perdido o trabalho num projeto de que participava.
A visibilidade da afronta ao agente público trouxe punição imediata ao casal. Mas não serviu de lição ao nosso povo, porque, menos de duas semanas depois, um desembargador do Estado de São Paulo, que deveria, pelo cargo que ocupa, dar o exemplo no respeito às normas sociais, repetiu a dose, e no mesmo contexto: a violação das normas de segurança sanitária durante a pandemia.
Em plena luz do dia, o desembargador Eduardo Almeida Prado, que ostenta o sobrenome de uma das mais tradicionais famílias paulistanas, passeava pela areia da praia na cidade de Santos, mas sem máscara, desrespeitando decreto municipal. Questionado por um guarda, o desembargador perdeu as estribeiras e partiu para a agressão verbal, bastante alterado. Mas não bastou dizer que era muito mais que o “pobre” guarda civil. Eduardo Almeida Prado ainda telefonou para o Secretário de Segurança de Santos para pedir a cabeça do guarda.
E foi além, rasgou a multa aplicada pelo guarda, a quem chamou de analfabeto, crime de injúria e difamação, e a jogou na areia da praia, outra infração.
Nesse caso do poderoso desembargador com sobrenome chique, a punição não foi imediata, e nem será. Vai demorar porque depende de investigação pelo CNJ, o Conselho Nacional de Justiça, órgão em que foi denunciado. A maior punição que o desembargador pode enfrentar, de acordo com a Loman – Lei Orgânica da Magistratura Nacional, é a aposentadoria remunerada. Isso mesmo, aposentadoria compulsória com direito aos vencimentos, que não são poucos
Segundo o jornal Folha de São Paulo, em junho, Eduardo Almeida Prado recebeu R$ 50.215,88 de salário bruto (R$ 35.462,22 de remuneração, mais R$ 6,9 mil em "vantagens pessoais”, R$ 6,7 mil em "vantagens eventuais", mais R$ 1 mil de indenizações). A “demissão”, em forma de aposentadoria, não vai prejudicar os bolsos do desembargador, mas certamente vai ferir os brios de quem tem um nome de família tão tradicional a zelar.
Pelo sim, pelo não, o desembargador pediu desculpas ao guarda municipal a quem destratou, só que cinco dias depois, com a água fervendo na panela. Mas será que são desculpas sinceras ou apenas pro forma, “para inglês ver”? Se fossem realmente sinceras, teriam que ser estendidas aos outros guardas a quem desafiou um tempo atrás, pelo mesmo motivo de caminhar pela praia sem máscara.
As cenas de desrespeito de parte da população brasileira, de engenheiros civis a desembargadores, às normas sanitárias contra a pandemia de Covid-19 são muito comuns, como bem sabemos pelas reportagens na televisão e pelos vídeos compartilhados nas redes sociais. São pessoas que não creem no óbvio, que há uma infecção mortal circulando por onde existe concentração humana. Talvez por motivos ideológicos, esses descrentes preferem acreditar no presidente Bolsonaro, que definiu a pandemia como “gripezinha” e que, somente há poucos dias, aderiu, com muita má vontade, ao uso da máscara.
A pandemia da Covid-19, um dia vai passar... Resta saber se a outra epidemia nacional, a da carteirada, a do “você sabe com quem está falando”, um dia passará também. Eu tenho fortes dúvidas, afinal, ela se sustenta muito bem há tantos séculos no nosso país.
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