A defunta que não morreu; por Flávio de Ostanila
Texto escrito com lágrimasMaria do Amparo era a filha mais velha de um casal de agricultores. Nasceu pequenina, feia, pobre... e tarde, pois sua mãe a abortou umas três vezes. Como era de se esperar, no sertão mais sertão do sertão do Piauí, cresceu (nem tanto!) subserviente, ignorante e bruta.
Durante o dia, em roças alheias: capinando, plantando, colhendo, se lascando. À noite, em casa: lavando, cozinhando, limpando, se lascando. No fim de semana, mais trabalho para variar; entretanto, como recompensa (não só se lascando vive o indivíduo!), era agraciada com delicadas surras de vara do ilustríssimo pai cachaceiro.
Felizmente há males que vêm para o mal, e Maria do Amparo, aos quatorze anos, fugiu de casa com um pedreiro que adorava alisar paredes e mulheres; com o qual teve doze rebentos. A jovem esposa agora tinha a leve tarefa de criar um monte de filhos e ainda trabalhar fora de casa a fim de auxiliar o marido nas despesas. Lavava roupa em açudes o dia inteiro; os filhos, em casa, cuidavam uns dos outros.
O marido, tisico, morre. Maria do Amparo é contemplada com a obrigação de manter todo o mundo vivo, sem plano de saúde, sem economias, sem dentes. Pior do que isso! teve que eleger cada político ladrão, que só contribuía para sua miséria; teve que agradecer as migalhas que injustamente lhe pagavam por trouxas enormes de roupas; teve que ser vizinha de pessoas que humilharam, discriminaram e maltrataram sua família; teve que dar bom-dia aos policiais que torturaram um filho; teve que assistir, sem nada poder fazer, à partida de todos; teve que aceitar a triste realidade de que um e outro passavam necessidades e que não podia ajudá-los; teve que conviver com um tal "Dia da Criança" e não poder presentear os netos; teve que sonhar com uma ceia de Natal e viver o pesadelo de não realizá-la.
Maria do Amparo mal viu os filhos crescerem. Só teve de engolir a triste ideia de que eles jamais lhe pertenceram: foram sempre do injusto mundo. Um bilhão de vezes sentiu o medo de cada um, e nunca uma lágrima caiu por sua própria angústia; porém, pelos filhos, elas encheriam os oceanos.
Antes de completar sessenta e três anos de idade, teve que, na doença, ver seu corpo – que suportou sol, fardos e dor – definhar; teve que, sobre uma cama barata, engasgar o orgulho e aceitar visitantes indesejados – porque, nessas horas, até os algozes se compadecem e comparecem; teve que encarar o fim sem saber se cumprira a missão, porque os filhos, pelo mundo, esqueceram-se de lhe agradecer.
Maria do Amparo – que não sabia ler nem comer com garfo e faca, que não aprendeu a dirigir um automóvel, que não pôs os pês calejados nas areias da praia, que não foi ao cinema nem ao teatro, que jamais andou numa roda-gigante – teve que morrer, sem ao menos ter vivido.
Flávio José Pereira da Silva [Flávio de Ostanila] é escritor, policial penal do Piauí, bacharel em Direito e professor de Língua Portuguesa.
Referência
SILVA, Flávio José Pereira da. Um punhado de dor, um punhado de humor. Picos: Tecnograf: 2017.
Fonte: JTNEWS
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