Chile acabou com "seu SUS" sob ditadura de Pinochet, a inspiração econômica de Paulo Guedes
Para pesquisadores, as mudanças liberais proporcionaram melhoras nos índices de saúde por lá, mas aumentaram a desigualdade socialHoje privatizado, o sistema de saúde do Chile já foi público e cobria toda a população. A mudança ocorreu durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), cuja política econômica vinha da mesma escola liberal do atual ministro da Economia, Paulo Guedes.
Especulações sobre uma possível privatização do SUS (Sistema Único de Saúde) ganharam destaque na última semana depois que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) editou um decreto que permitia estudos para parcerias entre os setores privado e público para construção e administração de UBS (unidades básicas de saúde).
Após repercussão negativa, o presidente revogou a medida, mas afirmou que editará um novo decreto na semana que vem. Diferentemente do que ocorreu no Chile, Guedes negou que tenha a intenção de privatizar o SUS. Para pesquisadores, as mudanças liberais proporcionaram melhoras nos índices de saúde por lá, mas aumentaram a desigualdade social.
A ditadura liberal de Pinochet
O SNS (Sistema Nacional de Saúde) chileno foi criado em 1952 baseado no NHS (National Health Service) britânico, considerado o primeiro sistema de saúde unificado no mundo. Quando surgiu, ele não tinha cobertura universal, seu financiamento era vinculado à contribuição do Seguro Social.
O SNS ficou mais parecido com o SUS brasileiro entre o final dos anos 1960 e o início dos 1970, sob o governo de Salvador Allende. De acordo com um estudo de Maria Eliana Labra, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), nesta época, o sistema cobria 100% da população na questão de saúde pública e prestava atenção médica e hospitalar a 90%. De fora, ficavam apenas as Forças Armadas, que mantinham sistemas de saúde próprios, como é até hoje.
Com o golpe militar chileno em 1973, Pinochet passou a adotar uma agenda liberal que tinha como dois dos principais pilares a abertura para o mercado externo e privatizações. Entre as medidas adotadas, houve o fim de um fundo previdenciário coletivo, como o INSS brasileiro, e a transformação do SNS em SNSS (Sistema Nacional de Serviços de Saúde), um órgão que fornecia 27 serviços de saúde de forma autônoma.
"O objetivo era introduzir a iniciativa privada na saúde, seguindo as diretrizes neoliberais organizadas e endossadas na Constituição de 1980, onde o direito à saúde era entendido como a oportunidade de escolha do sistema de saúde ao qual se filiar", afirmou ao UOL a organização chilena Salud para Todas y Todos,
Foram criados dois fundos de contribuição: o Fonasa (Fundo Nacional de Saúde), que oferece assistência pública com possibilidade de contratação privada, e as Isapre (Instituições Previdenciárias de Saúde), totalmente privado.
Na prática, segundo pesquisadores chilenos e brasileiros da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana), isso significou uma divisão entre "as pessoas que tinham os maiores salários, que puderam comprar seus planos de saúde no mercado das Isapre", "os setores médios, que puderam optar pela modalidade de livre escolha do Fonasa para o atendimento com prestadores privados, fazendo copagamentos" e, por fim, "os setores com os salários mais baixos, ou desempregados, que eram atendidos nas unidades de saúde do Estado gratuitamente".
Para fazer parte do terceiro grupo é preciso comprovar situação de pobreza e a consequente impossibilidade de pagar pelos fundos. "A saúde no Chile não é mais um direito universal, mas sim a possibilidade de escolher entre estes dois subsistemas de muitos contrastes", afirma o Salud para Todas y Todos.
Desigualdade cresceu
No estudo publicado em 2001, Labra ressalta que, à época, a situação de saúde chilena se apresentava melhor que a brasileira. Para ela, as mudanças neoliberais contribuíram para que seus indicadores de saúde estivessem "próximos dos níveis de países mais desenvolvidos."
Por outro lado, o fim da universalidade acentuou a desigualdade no país. Hoje, segundo o Salud para Todas y Todos, uma família chilena gasta, em média 33% de sua renda para ter acesso à saúde enquanto o índice de outros países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é de 8,5%. Além disso, 78% da população depende do Fonasa ao passo que apenas 17% consegue pagar as Isapre.
"Os processos que conduziram à dualidade do sistema de saúde do Chile não apenas reproduzem as desigualdades sociais do conjunto social, como as ampliam, resultando na manutenção de altos índices de desembolso direto, o que contribui para a insegurança e desproteção de ambas as populações, mas, certamente, com maior impacto nos setores menos favorecidos", conclui o estudo da UEFS.
Guedes vem da mesma escola
Paulo Guedes é da mesma escola ultraliberal que os idealizadores do plano econômico da ditadura de Pinochet. Foi na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, nos anos 1970, que o atual ministro da Economia conheceu os "Chicago Boys", como ficaram conhecidos os economistas do ditador, seguidores de Milton Friedman.
Foi por meio deles que Guedes foi dar aula Universidade do Chile, em Santiago, no início dos anos 1980, convidado por Jorge Selume, então diretor da Faculdade de Economia e Negócios e diretor de Orçamento de Pinochet. A universidade, comandada por militares, era o centro de formulação da política econômica da ditadura.
Diferentemente de seu chefe, Guedes nunca fez alusões públicas positivas à ditadura chilena. "Eu sabia zero do regime político. Eu sabia que tinha uma ditadura, mas para mim isso era irrelevante do ponto de vista intelectual", declarou à revista Piauí, em 2018, ao falar do período.
Agora, o Chile indica uma possibilidade real de mudança deste sistema. No último dia 26, 78% dos chilenos votaram, em plebiscito popular, pelo fim da Constituição ditatorial de 1980 e decidiram por uma nova Carta Magna — a primeira a ser constituída por uma assembleia eleita pelo voto popular, como a nossa de 1988.
Por aqui, Guedes já afirmou que privatização do SUS seria impensável e não entra e nunca esteve em análise. Após a repercussão negativa sobre o decreto, Bolsonaro revogou a medida na última quarta (28), mas já afirmou que deverá editar um novo na semana que vem.
Fonte: UOL Notícias
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