Epitáfio de um policial penal; por Flávio de Ostanila
"Aqui, jaz José. Nasceu morrendo, morrendo viveu. [...] Entre ficção e realidade, literalidade e conotação, uma metáfora (ou não) se lhe impunha - a de que a unidade prisional era o Inferno"Era seis de junho de dois mil. José assumia o cargo de agente penitenciário. Esse ofício, na verdade, não foi uma escolha: foi necessidade. O que não impediu José de esperar que o trabalho lhe fosse um trampolim para ascender profissional e socialmente. O incauto não demoraria a perceber que, para seu desespero, o único salto que dera foi para o abismo.
Durante os anos que se seguiram, José viu injustiça, sofreu-a e, no afã de fazer justiça, foi injusto às vezes. E quanto mais o tempo passava, mais impotente José se sentia. Não possuía autoridade para proteger as pessoas mais vulneráveis, nem força para corrigir os malfeitos cometidos por colegas desonestos. Sequer sua voz alcançava os superiores que faziam chefes indivíduos ruins.
Não bastasse o sentimento de debilidade, custou-lhe compreender que estava em um universo paralelo, onde tudo era um "faz de conta": judiciário aparentando aplicar a lei; comunidade carcerária fingindo estar arrependida; sistema penitenciário simulando humanizar; sociedade civil dizendo se preocupar. No mundo real, José era instado a confrontar a fantasia com uma verdade absurdamente incômoda e frustrante.
Entre ficção e realidade, literalidade e conotação, uma metáfora (ou não) se lhe impunha - a de que a unidade prisional era o Inferno. Justificava que, por isso, Deus não passava dos portões de entrada. Ou talvez porque carcereiros tenham como antepassados remotos os soldados romanos que torturaram Cristo - divagava José a um e outro companheiro de profissão durante bebedeiras, que ficaram, cada dia, mais frequentes.
José definhava a olhos vistos, sem que ele mesmo visse. Já não tinha mais esposa, tampouco olhava pelos filhos.
Envolveu-se em acidentes e contendas; causou ferimentos e carregou feridas.
Da carreira, restaram-lhe muito mais dívidas do que amigos. Para uns, José foi fraco; para outros, ele teve o que mereceu. Em sua tímida defesa, poucos. Inúmeros o acusaram de tantas coisas. Mas ninguém sentiu sua dor ou chorou sua morte.
Ante esse breve relato de uma lancinante existência, qualquer de vós suporia que o sistema penitenciário o matou. José - que sobreviveu a emboscadas e resistiu à covid - não foi vítima de tiro, também não cometeu suicídio.
José, senhoras e senhores, foi gravemente golpeado pela indignação, porém foi a desesperança que o abateu.
Desde então, insepulto, ele vaga à espera de um velório. Pobre José!
Flávio José Pereira da Silva [Flávio de Ostanila] é policial penal, escritor, bacharel em Direito e professor de Língua Portuguesa.
Fonte: JTNEWS
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