Um dia de paz; por Flávio de Ostanila
"...era um dia tão calmo que nem o vento varria os mais leves objetos."Tinha tido uma semana horrível, de um mês horrível, de um ano horrível, de uma vida horrível – conforme ele mesmo confessou aos alunos do Premen, em Picos, aproximadamente 310km de Teresina.
Era professor de Língua Portuguesa, entretanto mais parecia um líder sindical, pois a tudo associava questões políticas, mazelas sociais – como desigualdade entre ricos e pobres –, nepotismo, corrupção etc. Costumava dizer: “Pobre é tão marginalizado que nem sequer vive: ‘veve’. Isso mesmo! ‘Veve’ em bairro sem saneamento básico, ‘veve’ sem plano de saúde, ‘veve’ sem salário digno, ‘veve’ sem educação de qualidade, ‘veve’ sem segurança, ‘veve’ conformado com a ideia de ser desvalido e com o fato de que político bom é o que ‘róba’, mas faz”.
Era avesso a arbitrariedades e pregava a insurgência contra qualquer manifestação tirânica. Certa vez foi multado porque não obedecera ao comando de parar emitido por um guarda de trânsito. Em sua defesa, alegou que até os imperativos, a exemplo do “pare” da questão, ficariam mais gentis com um por favor. Também foi demitido de uma escola privada por se recusar a usar a farda exigida pelo diretor. Argumentou que não era soldado para usar uniforme e que não ajudaria a engrossar as fileiras de zumbis. E por falar em filas, nada fazia que tivesse que enfrentar uma. Reclamava que era ultrajante ter de sujeitar-se a elas para receber atendimento médico, pagar uma conta, pegar um ônibus e, pior ainda, para comer.
Orgulhava-se de ter participado, quando adolescente, de movimentos estudantis e enchia a boca ao criticar posturas demagógicas e antidemocráticas de políticos brasileiros. Certamente se tornava alvo de retaliação, como remoções “por interesse da Administração” e suspensão com perda de vencimentos após “devido processo legal e contraditório”. Quando lhe perguntado se tanta luta valia a pena, ele respondia, com brilho no olhar, que era o mínimo que podia fazer para tornar o mundo menos ruim para sua filha de seis anos.
Incomodavam-lhe a desorganização no tráfego, o mau atendimento no comércio, a covardia dos amigos, a hipocrisia das autoridades, a traição das mulheres, a falta de educação das crianças. Porém, naquele dia em que se encerrava mais uma semana de muito trabalho, parecia que bons ventos sopravam. Não se aborreceu com o frenesi de automóveis, naquela manhã, quando ia ao colégio. Em sala de aula, sentiu que a turma estava mais atenta à explicação do conteúdo; parece até que chegou ao ouvir um “posso ir ao banheiro?”, em vez de “posso ir no banheiro?” ou “rô no banhero”.
Saindo do serviço, recebeu dos estudantes abraços de gratidão e ouviu da coordenadora elogios pela dedicação. Indo buscar sua filha em outro estabelecimento, impressionou-se com a visão paradisíaca dos carros adequadamente estacionados, sem barulho de buzinas, e com os pais transportando pacientemente seus rebentos. Sua criança beijou-lhe o rosto e lhe entregou um papel, que, só depois, deveria ser lido. Em casa, é recebido pela esposa com um sorriso no rosto e seu prato preferido à mesa.
No centro da cidade, para resolver uns assuntos, alegraram-no o “deseja algo, senhor?” e o “volte sempre!” da atendente da loja. Na banca de revistas, contemplou, por alguns instantes, dois senhores que debatiam política amigavelmente. Lembrou-se do que lhe entregara a filha; contudo, ao pegá-lo no bolso, o telefone toca. Era seu irmão, com quem não falava havia vários anos, convidando-o para ser padrinho de Batismo de uma sobrinha que ele ainda não conhecera.
A sensação de paz tomava-lhe a alma. Momento em que veio à lembrança o bilhetinho de sua pequena. Deixara-o cair quando sacou do bolso o celular. Sai em desespero à procura do papel. Felizmente o avista no meio da rua: era um dia tão calmo que nem o vento varria os mais leves objetos. A magia daquele dia é, rapidamente, restabelecida.
Abaixou-se para pegar o bilhete, e, ao erguer a cabeça, uma ambulância que tentava desviar-se de um pedestre desatento o atinge. Quem me contou essa cena disse-me que não notou desespero em sua atitude; que ele cerrou os punhos, fitou o veículo e aceitou, como a terra seca recebe a chuva, o impacto do carro.
No hospital, poucos amigos e alguns familiares presenciaram a dificuldade dos enfermeiros para abrir uma de suas mãos, na qual estava o papelzinho dado pela filha, com letras tímidas e dizendo assim: “Ao melhor pai do mundo. Te amo!”.
Flávio José Pereira da Silva [Flávio de Ostanila] é escritor, autor deste e outros artigos no JTNEWS, policial penal do Piauí, bacharel em Direito e professor de Língua Portuguesa.
Vide sua última Crônica AQUI.
Referência
SILVA, Flávio José Pereira da. Um punhado de dor, um punhado de humor. Picos: Tecnograf: 2017.
Fonte: JTNEWS
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