Vidas menosprezadas, mortes banalizadas: 465 policiais morreram em 2020 em decorrência da COVID-19
Esse número é oito vezes o número de mortos em confronto durante o serviço no ano passado e ajuda a compor o cenário de tragédia e medo que a gestão da pandemia ajudou a construir no BrasilO Monitor da Violência traz um número avassalador e, ao mesmo tempo, revelador de como os policiais brasileiros são negligenciados e feitos de peões dos discursos políticos. Muitos à mercê dos mercadores de medicamentos milagrosos, 465 policiais morreram em 2020 em decorrência de terem contraído o Novo Coronavírus.
Esse número é, se analisado em perspectiva, oito vezes o número de mortos em confronto durante o serviço no ano passado e o dobro se considerarmos na conta também os de folga, e ajuda a compor o cenário de tragédia e medo que a gestão da pandemia ajudou a construir no Brasil.
Gestão essa que parecia ignorar até menos de um mês atrás que uma quantidade significativa de profissionais de segurança pública trabalha em contato direto com a população e está em constante risco de contaminação e, ainda, de transmitir o vírus para seus familiares e amigos.
Foi somente no fim de março que tais profissionais ganharam o direito de serem vacinados. Até então, fora da lista inicial dos grupos prioritários para a vacinação do Programa Nacional de Imunização (PNI), os policiais têm tido um papel central na gestão da crise sanitária, especialmente na garantia de medidas de distanciamento social e proteção de equipamentos de saúde pública.
Piores taxas
Nas 27 unidades da federação, a taxa média de mortes por COVID-19 é 0,9 policiais para cada grupo de mil policiais. Em termos subnacionais, os dados mostram que todas as unidades da federação tiveram policiais mortos por COVID-19. Rio de Janeiro (65), Amazonas (50) e Pará (49) foram os estados com mais agentes mortos.
Porém, em termos proporcionais, Amazonas foi o estado com a maior taxa de policiais mortos e a marca atingiu 4,7 mortos por grupo de 1 mil policiais. Naquele estado, os policiais morreram cinco vezes mais por COVID-19 do que a média nacional.
É válido relembrar que foi exatamente a partir do surgimento da nova variante do vírus no Amazonas que o país, enfim, percebeu a gravidade da crise sanitária e acordou para a discussão sobre responsabilidades e para a descoordenação de ações entre governo federal, estados e municípios.
Foi a partir da explosão de casos no Amazonas e da falta de oxigênio nos hospitais que a vacinação passou a ser vista como a principal estratégia de combate ao Novo Coronavírus e fez com que o governo federal modulasse sua narrativa negacionista. Mas isso só ocorreu agora em 2021 e fez com que, durante 2020, o combate à pandemia fosse fortemente marcado pelo embate ideológico.
Afastamento de policiais
E as polícias não ficaram imunes a esse embate. Enquanto a média de policiais afastados das atividades em algum momento do ano passado por apresentar sintomas ou fazer parte de algum grupo de risco foi de 24,5% (126.154 agentes da ativa), Amazonas afastou apenas 6,6% dos efetivos das suas polícias Civil e Militar.
Ao negar afastar e isolar policiais suspeitos de estarem contaminados como medida preventiva, o estado acabou por potencializar o número de mortes. E isso se repetiu no Amapá, que afastou apenas 7,8% de seus policiais civis e militares e teve o dobro de mortes em relação à taxa média nacional.
Em sentido contrário, Santa Catarina afastou 36,3% do seu efetivo das polícias Civil e Militar e apresentou uma taxa média de apenas 0,1 mortes para cada grupo de 1 mil policiais. Tocantins afastou 38% do efetivo policial e apresentou uma taxa de 0,4 mortes de policiais por COVID-19. São Paulo, que tem o maior efetivo policial do país, afastou 27,7% dos seus policiais e teve uma taxa de mortalidade por COVID-19 entre os policiais de 0,5 policial para cada 1 mil policiais, também abaixo da média nacional.
As exceções à regra foram, sobretudo, Rio de Janeiro e Paraíba, que afastaram cerca de 34% do efetivo de cada estado e, mesmo assim, tiveram taxas de mortalidade policial de 1,2 e 1,6 mortes para cada grupo de 1 mil policiais, respectivamente. Seja como for, tais oscilações demonstram a forma como as chefias e comandos das corporações têm lidado com a pandemia e permitem que sejam observadas as estratégias de prevenção adotadas.
Discurso radical
A COVID-19 mudou a rotina das polícias e, no dia a dia, piorou bastante as condições de vida, saúde e trabalho dos seus profissionais. Para complicar, o debate radicalizado de setores bolsonaristas tentou usar as polícias para seus objetivos, como o que envolveu a morte do soldado Wesley Soares Góis, da Polícia Militar da Bahia, colocando-as contra as medidas sanitárias de prefeitos e governadores.
Os números inéditos do Monitor da Violência são, portanto, um alerta para que os policiais brasileiros parem de ser tratados como marionetes do jogo político, inclusive por representantes de suas próprias categorias.
É preciso que os mecanismos de proteção, saúde e valorização do trabalho previstos na lei que criou o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública) sejam efetivamente colocados em prática e não se transformem em letra morta ou normas esvaziadas. Mudar a segurança pública implica em mudar a forma como governos, sociedade e polícias se relacionam entre si. A vida não pode ser menosprezada e/ou a morte banalizada.
Por Bruno Paes Manso, Renato Sérgio de Lima e Samira Bueno, Núcleo de Estudos da Violência da USP e Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Fonte: G1
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