Desvencilhar-se dos lençóis
"Ainda acredito no amor. Defendo, com convicção, que existem dois tipos bem distintos de velhice""A sociedade define e impõe um padrão psicossocial de velhice. O velho se julga velho e é julgado velho. Julgando-se velho, comporta-se como tal e faz com que seja assim considerado dentro de seu meio. Considerado velho pelo meio, é induzido, de forma até inconsciente, a assumir o papel e a postura de velho, numa tentativa de corresponder às expectativas, comportando-se como esperam que se porte. Intimida-se diante da vida. Risca de seu dicionário a palavra ousar. De seu coração, a palavra paixão. De seu viver, a expressão “grandes emoções”. E passa a viver a vida dos filhos, dos netos, dos sobrinhos, dos bisnetos, enfim, de quaisquer outras pessoas. Este velho merece piedade. Não consegue mais ser e se contenta em não ser. De fato, surpreendemo-nos com o que ainda somos capazes de ser, no momento em que superamos o medo de ser".
Maria das Graças Targino
Há uma quantidade ímpar de escritos – impressos ou não – que dissertam sobre a velhice e o ato de envelhecer. São matérias jornalísticas, artigos, folhetos e livros, literatura de cordel, poemas, crônicas, dissertações e teses acadêmicas, etc. etc. etc. Há autores brasileiros e internacionais de formações distintas que discorrem com propriedade sobre a temática.
Além da filósofa francesa Simone de Beauvoir, autora de “A velhice”, uma das obras mais emblemáticas, uma vez que, à época, ainda em 1970, já desmistifica as hipocrisias que cercam a velhice, há muitos outros, a exemplo do neurologista e psiquiatra norte-americano Oliver Wolf Sacks, com “Gratidão”; Yasunari Kawabata, primeiro escritor japonês a ganhar o prêmio Nobel de Literatura e autor de “A casa das belas adormecidas”; Wilson Jacob Filho, geriatra brasileiro e organizador da coletânea “Envelhecimento: uma visão interdisciplinar”.
Eu própria, no alto da experiência de jornalista, cronista, mulher, mãe, esposa, amante e literata, ao redor de meus 40, muito escrevi sobre a velhice. Palestrei em instituições variadas Participei de mesas redondas e eventos similares. Hoje, quando a Senhora Velhice mostra as garras afiadas, revendo algumas falas antigas, confesso, sem pudor, que não as repetiria.
Sinto vergonha do otimismo desenfreado à época. Sensação de embuste, farsa, mentira descarada e despudorada em diferentes momentos. Quando, por exemplo, com segurança, bradava que a velhice nada mais é do que uma fase da vida, sem significar perda de dignidade e vontade de avançar, com esplendor e luz própria, não encontro o diabo desse fulgor. Tolo engano.
Transcorridos anos e décadas, sustento algumas premissas. Ainda acredito no amor. Defendo, com convicção, que existem dois tipos bem distintos de velhice. Um é essencialmente biológico. É correr atrás da bola e perdê-la para o adversário distante. É a dificuldade de orgasmo. É a dificuldade de ereção. É a memória fugidia. É a celulite. Os seios flácidos. É a dor aqui e ali. E o pior: canseira infinda.
Não a lassidão física. É como se a correnteza da vida me levasse devagarinho ao rio infindo, serelepe e ardiloso. Verdade que teorias e pesquisadores lutam para encontrar substâncias capazes de bloquear o processo de velhice. Mas, por enquanto, uma única certeza – a velhice biológica é inevitável, embora não mais tão inexorável quanto outrora. As lentes de contato devolvem a visão perfeita que deu adeus há algum tempo. Aparelhinhos aumentam sons já não tão perceptíveis quanto antes.
Cirurgias, remédios e substitutos permitem a sobrevida dos cardiopatas crônicos. Estrogênios tornam possíveis exercícios sexuais que a mente idealizava e o corpo não mais atendia. Agora, em meio ao silêncio quase sagrado de amantes em transe e à obscuridade que protege os corpos decadentes e corroídos, tudo é possível (ou quase tudo).
O segundo tipo de velhice é bem mais cruel: é a velhice essencialmente social. E é contra esta que devemos lutar. O velho é marginalizado e oprimido. E é a sociedade que favorece tal marginalização e opressão. O cidadão é velho não tanto porque o seja na idade, nas artérias, nos ovários, na vagina ou nos testículos, nos músculos ou nos neurônios, mas, sobretudo, o cidadão é velho porque assim é decretado. É a sociedade que diz que velha só ama filhos, netos e bisnetos, mas não deseja o afago do homem ou uma transa encharcada de carinho, suor e murmúrios.
Quer dizer, consciente dos segundos e minutos que fluem, não peleio com a Senhora Velhice. A maior parte do tempo, a enfrento, a desprezo, a insulto e me desvencilho de seus grilhões de ferro em busca de flores amarelas ou vermelhas que me protejam com sua beleza e seus espinhos, aqui e acolá.
Eu que odeio certezas, asseguro que somente os que envelhecem podem descobrir, entre tantos senões e contratempos, as duas faces da moeda. É verdade que só se conhece a felicidade, quem vivenciou a tristeza; só se alcança as maiores alturas quem mergulhou nas profundezas das cachoeiras límpidas ou emporcalhadas!
Por tudo isto, apesar de meus pudores e a sensação de deslocamento em diferentes ambientes, sustento, talvez para espanto de alguns, que é preferível ser um velho ridículo aos olhos dos outros do que um velho acabrunhado diante de seus próprios olhos. É, sim, preferível, enfrentar como leoa os dias sem sol, não importa o sol luminoso, nos quais nosso maior ato de coragem é conseguir desvencilhar-se dos lençóis e sair passo a passo do quarto sombrio, dando trégua às lágrimas que escorrem e aos gritos paralisantes!
Maria das Graças Targino é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto Interuniversitario de Iberoamérica.
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