Homenagem aos que têm fome
"E aqui há um engano quase generalizado. Há quem pense que doar um valor X ou Y é o bastante"A bem da verdade, ao contrário dos que culpam a pandemia como a grande vilã, quando, na verdade, pelo rastro de tristezas, mortes e perdas que ainda vem deixando em sua passagem nefasta e inesperada, com milhões de famílias destroçadas por perdas irreparáveis e sonhos extraviados no meio do caminho, em céus escuros e em mares chorosos, no meu caso específico, visualizo a Covid-19 como um doloroso e dolorido gatilho.

Dissimuladamente, traz à tona estrelas cinzas encobertas de muita dor e sem qualquer esplendor, decerto, antes já existentes no meu foro íntimo.
Consultórios de terapeutas, psiquiatras, pediatras, clínicos gerais e das mais diversificadas especialidades, lotados de pacientes impacientes pela retomada de uma vida comum em dias comuns em anos comuns. Poucos são os que se deparam com médicos sem pose de rei e/ou de rainha, para dissimular suas próprias fragilidades.
Estou no rol dos cidadãos que descobriram uma médica com alma de médica e de gente como a gente. Em poucas semanas, revivi de uma forte e inusitada depressão, que me ameaçava com olhos cheios de raiva, cólera, irritação, sugando minha alegria e minha teimosia em seguir. A tal letargia sucumbiu, no mínimo, temporariamente, frente aos olhos de lince da geriatra P. A., paradoxalmente, olhos mágicos e, simbolicamente, rasos d’água. Se a tristeza voltará, eis o enigma...
Campanhas e mais campanhas espocam por toda parte num gesto pleno de afeto para dar comida aos que têm fome com a proximidade do Natal e de um Ano Novo que mostra a cara pouco a pouco. Sempre e sempre, repito como os papagaios sábios, coloridos e mágicos: o gesto de olhar e enxergar o outro deveria perdurar o ano inteiro. O voluntariado precisa ser uma prática do dia a dia. E aqui há um engano quase generalizado. Há quem pense que doar um valor X ou Y é o bastante.
Tal como os moradores de rua, os sem-teto ou os sem-abrigo, crianças e anciões que vivem em residências de longa duração, creches, abrigos ou qualquer outra denominação que se dê, esboçam sorrisos ou escancaram gargalhadas ruidosas e prolongadas, às vezes, com um toque no rosto, um aperto de mão ou um abraço. Em momentos de nossas vidas sempre plenas de atividades, que parecem inadiáveis, precisamos dedicar ao outro um gesto de amor, não importa se é Natal ou não. Eis a fome de amor em vez da fome nutricional.
É óbvio que as pessoas necessitam de comida para sobreviver não apenas nesta fase do ano. A penúria persiste, com frequência, por dias, meses e anos a fio. Eis a responsabilidade social e permanente dos que fazem política, dos grandes empresários, das organizações institucionais, dos meios de comunicação, da sociedade civil como um todo, incluindo cada um de nós que teve e/ou tem um pouco mais de chance na vida.
Porém, além da nutrição, são muitos e muitos os que têm fome de amor e de afeto, mesmo por trás de muros altos, cercados de artefatos tecnológicos de última geração e vestimentas de grife diante de mesas com cardápios para lá de requintados. A solidão ronda por lugares inusitados. Praças sujas. Palacetes impecáveis. Religiosos e ateus. Jovens e velhos. Etnias distintas. Orientação sexual qualquer. Talvez, seja esta a inspiração que leva Clarice Lispector a afirmar ser importante que “minha solidão me sirva de companhia.
Que eu tenha a coragem de me enfrentar. Que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo”. Afinal, nem sempre é fácil deixar amores por meio de caminhos escuros e sombrios ou descobrir que os amigos foram ocasionais ou circunstanciais, até o momento em que você servia para lhes favorecer alguma benesse ou alguma migalha. E há os que partiram por não suportar o chão que desmoronou ao seu redor, alegando não poder compartilhar angústias não suas.
Por tudo isso, dedico este Natal e Ano Novo que se aproximam aos que têm fome de comida e de amor, ao tempo em que também consagro esses dias festivos aos que estiveram comigo e lamento a perda de alguns parceiros de alegrias e de vida que partiram, mas, vez por outra, aparecem em sonhos cheios de risos. É também para um desses amores que a gente vive e deixa de viver, que torço como flamenguista para que a enfermidade que, hoje, o ameaça diuturnamente, mitigue tanta dor, alivie tanta agonia e sua limpa solidão!
Por fim, não podemos olvidar de quem permanece à margem do ritualismo alimentar e à beira da carência do amor!
Maria das Graças Targino é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto Interuniversitario de Iberoamérica.
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