Aos que pensam que sabem; por Flávio de Ostanila

"Em minha vida severina, cada conquista eu obtive só, e toda angústia foi apenas minha."

De tempos em tempos, sobretudo em período eleitoral, aparece toda sorte de doutos com soluções quixotescas para os mais diferentes problemas da Nação e, em especial, para os meus. Revisitando os versos de Gregório de Matos Guerra (1636–­1696), observa-se que esses sabichões estão por aí, e por aqui, prestando um serviço grandiosamente inútil faz um longo tempo: "A cada canto um grande conselheiro,/Que nos quer governar cabana e vinha;/Não sabem governar sua cozinha,/E podem governar o mundo inteiro".

Foto: Arquivo pessoalFlávio José Pereira da Silva [Flávio de Ostanila] é policial penal, escritor, bacharel em Direito e professor de Língua Portuguesa
Flávio José Pereira da Silva [Flávio de Ostanila] é policial penal, escritor, bacharel em Direito e professor de Língua Portuguesa

A mim o que mais me incomoda nessas aparições eventuais é que o pretenso oráculo atua de fato como uma divindade impondo sua visão de futuro para nós, mortais; dizendo o que nos é bom ou ruim; supondo que somos tão insensíveis que não percebemos, por exemplo, quando nosso dinheiro não é suficiente para as contas do mês. Mal comparando, é como se fosse preciso alguém me dizer: "Olha, Flávio! devo avisá-lo de que há um machado fincado em sua cabeça já tem uns quatro anos... e você perdeu muito sangue!". 

Eu –­ e ninguém mais –­ sei das batalhas que lutei, conheço das feridas que carrego e vislumbro as dores que suportarei. Sou capaz, sozinho, conforme tudo o que vivi, de fazer minhas próprias leituras de mundo. Portanto tenho plenas condições de escolher entre os candidatos A e B, ou simplesmente não optar por nenhum deles. Da mesma forma que possuo aptidão para expor minhas preferências por quaisquer outros temas –­ livros, filmes, músicas, mulheres. 

Além de sábias, essas pessoas se arrogam altruístas. Alegam agir pela coletividade, mas entendo que é um plural que lhes convém. Não passei procuração para que fizessem nada por mim e não vi nem senti coisa alguma feita para o meu bem-estar. Se, por acaso, algo realizado me contemplou, foi puro efeito extensivo. Grupos diversos passaram a ser convenientes pretextos para que pseudosolidários defendessem paixões e interesses mesquinhos.

Onde estava tanta preocupação comigo (ou com meu voto) quando me encontrei num leito de hospital?! Por quais lugares andavam os bons samaritanos nos dias em que eu não tinha de comer?! Na noite em que dormi na rua, não me deparei com benfeitores. Também não os notei naquela vez em que minhas filhas choraram por um brinquedo. Falsamente me acusaram e sem dó me agrediram; difamaram-me incansavelmente e me fizeram derramar tudo o que era lágrima; extirparam meu sorriso, açoitaram meu espírito e me mataram incontáveis vezes –­ e não avistei defensores. Em minha vida severina, cada conquista eu obtive só, e toda angústia foi apenas minha. 

O Boca do Inferno, poeta do Barroco no Brasil, citado no introito, não seria mais paradoxal em seus poemas do que o é gente que diz se importar agora, no entanto nunca se me apresentou nas ocasiões de sofrimento e peleja. 

Por isso, à semelhança do expoente baiano mencionado acima e com o escárnio de uma poesia satírica, Chico César, cantor e compositor paraibano, conclui coerentemente meu desabafo: "Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa, da bondade da pessoa ruim".

Confira AQUI a última crônica do autor, publicada com exclusividade pelo JTNEWS

Fonte: JTNEWS

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