Gabriel: o “bom amigo branco”
“Gabriel e a Montanha: Toda viagem é para dentro e para fora ao mesmo tempo”Há filmes com os quais nos identificamos por múltiplas razões. Assistir à superprodução do cinema brasileiro, ainda que não recente, novembro de 2017, “Gabriel e a montanha”, apesar do final trágico, me traz de volta sentimentos, sensações, ou, simplesmente, impressões. Por exemplo, retomo, aqui, a distância gigantesca que há entre viajante, viageiro e turista. No primeiro caso, estão os que viajam sem saber muito o porquê – trabalho, imposição familiar, etc. Ao viageiro, mais do que tudo ou de qualquer intenção, está o desejo de desvendar novas culturas e enfrentar diversidades e hábitos distintos, por mais estranhos que possam parecer. O turista está enfeitiçado com o brilho das vitrines e com as quinquilharias de shoppings e/ou de grandes mercados. Nada mais...
Produção de Fellipe Gamarano Barbosa (também diretor de “Casa Grande”, 2015) que assina o roteiro com Lucas Paraizo, roteirista de cinema e tevê, escritor e professor de cinema em instituições de ensino do Brasil, da Espanha e de Cuba, “Gabriel e a montanha” também me faz relembrar o continente africano, onde visitei alguns países em busca de conhecer sua gente, como África do Sul, Egito, Marrocos, Quênia e Tanzânia.
Estes últimos, coincidentemente, também constam da longa excursão do jovem Gabriel Buchmann, 28 anos, que percorre, ainda, o Oriente Médio e o Sudeste da Ásia, totalizando 26 nações, até seu corpo ser encontrado em julho de 2009, no Monte Mulanje, em Malawi, país do sudeste da África, caracterizado por topografia de regiões montanhosas. E é exatamente com um belo plano-sequência que Fellipe B. abre o longa-metragem, expondo a descoberta por acaso do corpo de Gabriel (João Pedro Zappa) pelos nativos, após incessantes buscas durante semanas, o que soa paradoxal – unir morte e beleza.
Imagino a oportunidade ímpar que Gabriel teve, de ainda jovem, partir para uma viagem como mochileiro para percorrer continente de espantosa desigualdade social, no caso, movido por algo sensacional – o desejo de unir teoria e prática. Após graduação em Economia e idealizar seu Doutoramento em Políticas Públicas para Países em Desenvolvimento junto à University of California, Califórnia, Estados Unidos, gostaria de ver de perto o que estudaria nos compêndios. Não teve tempo.
Cercada de dúvidas e muitas indagações, a morte de Gabriel por hipotermia, cerca de 10 dias antes de seu retorno ao Brasil, após quase um ano de vivência mundo afora, desperta em seu amigo, o cineasta Fellipe B., 37 anos, o desejo de recriar a vida do economista em seus últimos 70 dias. Depois de oito anos da partida aos céus do companheiro de infância, viaja para a África. Leva consigo equipe de 16 pessoas e atores amadores a bordo de um overland truck (caminhão-ônibus), com os quais resvala por cerca de 7.000 km2 em três países africanos (Tanzânia, Zâmbia e Malawi) com o intuito de recompor as experiências vivenciadas por Gabriel.
Durante 131 minutos, o filme consegue atingir o público pela leveza e simplicidade com que descreve a tragédia, de tal forma que está categorizado, ora como aventura, ora como drama. É visível que enaltece a beleza e não o horror. Enfatiza os momentos de pura magia, como o contato contínuo do protagonista com os nativos, sobretudo com as crianças que o cercam por toda parte. No entanto, a bem da verdade, a naturalidade com que Zappa trata as famílias negras, colocando-as lado a lado com o homem branco (mzungu), que dorme no chão dos africanos pobres ou miseráveis, come o que houver, caçoa dos futebolistas brasileiros e compara o mzungu com os massais incomoda a alguns que veem certa artificialidade no “menininho rico que brinca de ser pobre”.
Em meu caso específico, um aspecto tocante é quando os massai aparecem. Trata-se de povo guerreiro que vagueia, sobretudo, pelo território do Quênia e da Tanzânia, com o qual tive a sorte de conhecer e conviver. Os homens impõem-se com um bastão nas mãos a pastorear cabras e vacas, enquanto mascam ervas. O bordão tem toda uma simbologia: o poder de guerreiro. Embora haja tão somente a luta constante por terra e por gado com as tribos vizinhas, ao tempo em que exibem suas armas de guerra, asseguram que somente serão utilizadas para a defesa. Nunca para o ataque.
Quando me refiro aos massais, estou falando da gente mais colorida e mais exótica de toda a África. As mulheres são hábeis artesãs. Fabricam brincos, pulseiras e colares de mil cores. Além de adornarem seus homens e seus corpos, da cabeça aos pés, vendem os produtos artesanais em busca de algum dinheiro para o sustento das famílias. Aliás, por conta dos piolhos, são invariavelmente carecas e ambos (homens e mulheres), se não estão descalços, trazem sempre aos pés sandálias feitas de pneus imprestáveis, mas que se tornam muito graciosas pelas contas coloridas aí colocadas. Aliás, sandálias que fisgaram Gabriel e a mim. Ainda hoje, uso e guardo, com carinho descomunal, minhas sandalinhas massai!
É ímpar o encanto do cenário. É genuína a surpresa e indecisão dos trabalhadores locais ao se depararem com o corpo sem vida, ao som de trilha sonora divina, adequada sempre às diferentes circunstâncias, sob encargo do guitarrista e compositor francês Arthur B. Gillette. A música não conduz nem à dor nem ao sofrimento. Expressa reverência ao universo, à vida e à morte, reafirmando o que o próprio Gillette diz de sua obra: “Cada disco, cada música, cada projeto é um epitáfio. Cada música é a imortalidade em pequena escala”.
É também na África que Gabriel recebe a visita da namorada Cristina (Caroline Abras), que retorna ao Brasil para que ele siga até o perigoso topo do Monte Mulanje, seu destino final. Os que julgam Gabriel como “impostor”, além de exagerarem em sua condenação pela forma como trata John Goodluck, ator de nacionalidade indefinida e guia encarregado de conduzi-lo até o Monte Kilimanjaro (ou montanha branca, na língua massai), ponto mais alto da África, com altura de 5. 895m no Pico Uhuru, acreditam que, em meio às constantes desavenças entre o casal, Cristina traz à tona um Gabriel mais humano, e, portanto, mais falho, confirmando a intenção do diretor em não endeusar ou romantizar o protagonista, mas expor sua prepotência, às vezes, quase infantil e seus deslizes comportamentais. Aos berros, a jovem mulher “joga na cara” do amado que sua empreitada é uma fuga de si mesmo e não uma expedição de estudo e de pesquisa sobre o povo africano, o que, para alguns, desmorona a imagem do “bom amigo branco”.
Por outro lado, um dos pontos altos do filme é a fotografia multifacetada e consistente, além dos atores amadores e a utilização de personagens reais que cruzaram o caminho do Gabriel, a exemplo do citado John Goodluck. E é a partir do ideal de registrar a realidade sem subterfúgios, mas sem alarde, que “Gabriel e a montanha” consta como o único longa nacional selecionado para o circuito paralelo do Festival de Cannes, 2017, conquistando dois prêmios – o de Revelação e o da Fundação Gan.
Em minha percepção, equivocada ou não, eis um filme sem delongas. Expõe sem sofisticação o quanto o jovem Gabriel tinha fome de vida e pressa de viver, embora, para Fellipe B., o amigo fosse um poço repleto de contradições. Ele diz: “[...] sua fome de vida confunde-se com uma pulsão de morte, pois viver intensamente significa assumir riscos e aproximar-se da morte”, assertiva com a qual discordo! Afinal, assumir riscos é a essência da existência humana e da vida de cada dia.
Maria das Graças Targino é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto Interuniversitario de Iberoamérica.
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